Arquivo mensal: dezembro 2014

Bem-vindo, 2015. Venha com arte, surpresas e emoção

2014: o ano dos extremos visto na e pela mídia

A dez dias do fim do ano e olhando em retrospectiva, podemos visualizar um 2014 de extremos. A baixaria eleitoral da campanha presidencial transbordou as redes sociais, mas a cisão verificada entre os usuários de redes sociais nesse contexto nem de longe pode se resumir apenas a uma questão partidária. A polaridade verificada no contexto eleitoral é apenas a ponta de um iceberg mais sintomático, cujos fenômenos já podiam ser apreendidos desde o começo do ano. Mas, numa era em que vivemos de excesso de informação, quem lembra?

Nesse texto, tentamos resgatar alguns dos episódios do ano de 2014 que geraram grande repercussão nas redes sociais que sugerem uma cisão de posicionamentos muito clara e pouca relativização dos fatos sociais.

Quem lembra dos rolezinhos, dos justiceiros de ocasião, da dona de casa assassinada em público após um linchamento de rua ou das reações causada pelo beijo gay da novela? Pois foi assim que começamos o ano, divididos. Elitismo, racismo, homofobia, sexismo, troca de acusações e ódio: 2014 foi o ano dos extremos, que extravasou as redes sociais. Mas, se por um lado, essa visão sobre 2014 pode parecer desoladora com os rumos que a sociedade tem seguido, por outro mostra um aspecto positivo: as posições estão exacerbadas. As pessoas “saíram do armário” e mostraram, em alto e bom tom (e boa definição de imagem) os projetos de sociedade que concebem e aderem.

Classes sociais e elitismo são questões obsoletas?

Há quem diga  que a luta de classes é coisa do passado e que vivemos em harmonia numa sociedade cada vez mais interconectada, globalizada, que valoriza e reconhece as diferenças. Embora esse slogan seja intencionalmente forte, o que se viu nesse ano nas diferentes formas de mídia apontam para o lado oposto. O ponto de partida, ainda em janeiro, foram os “rolezinhos”: fenômeno social desde o fim do ano anterior, em que jovens, em geral de periferia, combinavam passeios, via internet, em grandes shoppings. Do ponto de vista da análise midiática, somente esse fenômeno já é interessante de se analisar. Contudo, foi a repercussão desses eventos nos veículos de comunicação tradicionais o que mais gerou debate – muitas vezes acalorados – nas redes sociais contra ou favor dos rolezinhos. Pouca gente parou pra pensar os significados e sentidos do fenômeno e suas motivações.

rolezinho

Apresentados como ‘um perigo’ aos clientes e lojistas dos shoppings, esses jovens de periferia pareciam, muitas vezes, uma afronta à classe média elitista e virou caso de polícia, com a proibição dos jovens de entrar nos shoppings e intervenção policial às vezes desmedida, utilizando até mesmo bomba de gás. A multidão de jovens e sua algazarra no episódio dos rolezinhos eram um incômodo por quais motivos? Pela classe social e cor (e, digamos, práticas culturais próprias desse grupo) ou por estarem em um local ao qual ‘não pertenciam’? O rolezinho era, afinal, um ato político? Essas e outras questões, muito mais profundas que o fenômeno aparente, apresentado pela grande mídia, nos debates das redes sociais costumam ficar em segundo plano. E no geral, a postura predominante de “clientes” de shoppings (que também se sentiriam incomodados com a presença de jovens negros e pobres e seus trejeitos) nos debates nas redes sociais criminalizavam e “bagunça” causada pelos rolezinhos, sem interessas as causas ou motivações desses eventos. [Evidências? jogue no Google a palavra rolezinho e leia os comentários abaixo das reportagens; e analise as posturas predominantes]. Estava clara a primeira cisão do ano nos debates em redes sociais: de caráter mais classista e racista do que qualquer outra coisa.

Poderíamos ter aprendido com o episódio dos rolezinhos. Mas, em uma sociedade dividida, continuamos reproduzindo as bizarrices classistas e elitistas, julgando os outros pelas aparências e demarcando território com a nossa suposta superioridade. Quem lembra do post preconceituoso da professora universitária, com a conivência de outros professores universitários, que julgou pela aparência um passageiro no aeroporto Santos Dumont? Não bastasse o preconceito, a professora ainda fez questão de compartilhá-lo em sua timeline no Facebook: “aeroporto ou rodoviária?”, perguntou.

aeroporto

O passageiro, como se sabe, era um advogado. A repercussão do episódio foi imediata (foi criada até mesmo uma página no Facebook para ironizar a professora), mas passageira. Talvez porque seja mais fácil esquecer posicionamentos com os quais as pessoas, em geral, se identificam. Afinal, quem é o usuário de rede social na internet?

Ainda estávamos em fevereiro de 2014. E o que aprendemos desses dois episódios? Nada.

A campanha eleitoral, sobretudo a presidencial, colocou novos ingredientes nas discussões sobre lutas de classes, políticas sociais, bolsas e meritocracia, por exemplo, colocando em pólos extremos pobres e ricos, numa relação diretamente proporcional à sua capacidade de escolha ou ao seu emburrecimento.

merito

Palavras como meritocracia passaram a vigorar nos posts mais conservadores, como se a mudança de condição social dependesse, exclusivamente, da vontade de cada um. “Não tem que dar o peixe, tem que ensinar a pescar”, era um discurso quase uníssono entre os mais conservadores. Mas e o anzol? E a linha? E o rio? Que meritocracia é essa, em que as pessoas já têm, como ponto de partida, uma situação de desigualdade?

 

Racismo, xenofobia e defensores de igualdades de ocasião

Era início de fevereiro, quando torcedores peruanos destilaram seu racismo em massa contra o jogador Tinga, do Cruzeiro. Em abril, foi a vez do lateral Daniel Alves, do Barcelona, ‘receber’ uma banana de uma torcedora na Espanha. Em setembro, foi a vez do goleiro Aranha, do Santos, ser chamado de macaco por uma torcedora em Porto Alegre.

banana

Além de expor a atualidade do tema racismo em nossa sociedade, esses três episódios expressam, pelas discussões colocadas em prática nas redes sociais, o quanto não sabemos lidar com o racismo. O quanto esse tema ainda incomoda, a tal ponto de não entendermos nada e, ao tentar criticar o racismo, acabarmos reforçando ele. A polêmica campanha #somostodosmacacos, por exemplo, começou com merchandising de ocasião e ganhou, nos perfis de famosos, repercussão das redes sociais. Logo, milhares de pessoas começaram a postar fotos com bananas em seus perfis com a hashtag “somostodosmacacos”, esvaziando de sentido a atitude de Daniel Alves, que por si só suscita várias interpretações: o que significa para alguém que foi comparado a um macaco comer a banana que lhe atiraram?

Um episódio de grande repercussão sobre esse é sempre uma boa maneira da mídia faturar em cima e o tema, é claro, foi amplamente explorado nos programas de entrevista na TV ou em reportagens nos veículos de comunicação impresso/digital. Em setembro, outro episódio de racismo voltou a acontecer no futebol e, novamente, teve grande repercussão nas redes sociais. A repercussão, no entanto, por vezes tirou do centro do debate a questão em si do racismo e colocou as questões clubísticas em primeiro lugar. Houve a condenação do clube da torcedora que xingou o goleiro Aranha de macaco, mesmo com o voto de um auditor que, por ironia, também publicava fotos racistas em seu perfil no Facebook. Socialmente falando, as repercussões geraram hostilidades contra toda uma torcida e, mais, contra todo um povo que sofreu linchamento moral, numa espécie de ação-reação a la olho por olho, dente por dente, como se ódio de combatesse com ódio e racismo com racismo.

Cá estamos no final do ano e continuamos vendo cotidianamente casos de racismo, às vezes de forma mais velada, às vezes de forma mais explícita, mesmo entre aqueles que se solidarizaram com Tinga, que postaram fotos com bananas em solidariedade ao Daniel Alves e que vociferaram ódio contra “aqueles outros racistas” na causa Aranha. Uma questão sintomática de uma sociedade que destila hipocrisia em posts politicamente corretos nas redes sociais, mas que é incapaz de rever seus próprios comportamentos. Comportamentos como os vistos nas redes sociais à época das eleições.

divisao

Inconformados com os resultados do processo eleitoral, eleitores atribuíram o resultado a uma suposta inferioridade do Norte-Nordeste ou à sua predominante dependência de programas sociais do governo. Como se sabe, nem uma nem outra é verdade. Contudo, durante 3 ou 4 semanas avassaladoras vivemos uma espécie de divisão do país, no melhor estilo “nós” (os mocinhos) vs “eles” (os vilões). Quem passou incólume por essas discussões de caráter preconceituoso em 2014, nas redes sociais, está de parabéns. Na maioria dos casos, não teve como não se envolver. Mas uma boa forma de criticar o racismo, a xenofobia o sexismo e a homofobia é fazer o que a Teoria Crítica ensina: começar pelo autocrítica. Ou seja, criticar a nós mesmos e nossas atitudes.

Conservadorismo: ‘JUSTICEIROS’, sexismo, homofobia E VOLTA À DITADURA

Esse foi também o ano em que os conservadores, até os menos conservadores, saíram do armário. Foi o ano em que dolorosamente alguns lembraram os 50 anos do golpe militar, enquanto outros pediam uma nova intervenção militar no país. Enquanto uma comissão preparava um dossiê sobre as atrocidades cometidas durante o regime militar, outros defendiam que nem houve ditadura e que “apenas terroristas” sofreram as consequências do golpe. Que cisão é essa, afinal, numa sociedade que aparenta ser tão pacífica e “igual”?

Para quem pensa que esse apelo ao militarismo é um sintoma da insatisfação com os resultados das eleições presidenciais, lembramos que já em 31 de março repercutiu nas redes sociais um vídeo em que estudantes invadiram a sala enquanto docente lia um documento de sua autoria, em comemoração ao golpe de 1964. A aula, realizada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), motivou um protesto de alunos da graduação da unidade. Vestidos com capuzes pretos e camisas manchadas de vermelho, em alusão à violência da ditadura, alunos ocuparam a sala no momento em que o professor Eduardo Gualazzi lia o discurso intitulado ‘Continência a 1964’.

ditadura

Teorias da conspiração sobre um golpe comunista no Brasil (qualquer semelhança com o contexto pré-1964 não é mera coincidência) e insatisfação com os resultados das eleições levaram a manifestações que pediam a intervenção militar, num claro desconhecimento histórico sobre o regime — o que, obviamente, mereceu ironias nas redes sociais. Não satisfeitos, parte desses manifestantes pediram “ajuda” aos EUA para intervir na política brasileira. Inspirados por Bolsonaro, Olavo de Carvalho e Rachel Sheherazade, Lobão, Rodrigo Constantino e outros, as bandeiras de luta do novo conservadorismo brasileiro são difusas, mas perigosas. Quem lembra da dona de casa assassinada no litoral paulista, após um linchamento coletivo por ser confundida com uma sequestradora? Ou quem lembra que os ‘justiceiros’ que amarraram um infrator em um poste (após ser linchado) também foram presos, meses depois, por tráfico de drogas?

santos

O mais bárbaro desses episódios de ‘justiça com as próprias mãos’ é, muito além da distribuição da violência gratuita, as dezenas de pessoas filmando e tirando fotos dos espancamentos, para compartilhar nas redes sociais. A barbárie da sociedade e de um conservadorismo que prega que “bandido bom é bandido morto” (no qual o ‘bandido’ não tem direito de defesa, nem julgamento) é, de um lado, a memória curta (e o silenciamento sobre as barbáries que os  ‘intelectuais da violência’ apregoam) das pessoas em geral e, claro, a sensação de impunidade.

Mais do que isso, é perceber que apesar dos efeitos catastróficos de um conservadorismo que ironiza e banaliza a violência e distorce a história e ameça a democracia, ele continua se perpetuando no centro do poder e, se de um lado causa repulsa, de outro angaria adeptos às personalidades que o defendem.

Chegamos ao mês de dezembro ainda com essa pedra em nosso sapato: como lidar nas redes sociais, com as notícias que por vezes chocam, com a conivência de uns e com a sensação de que, em alguns casos, as posturas são irreconciliáveis. Como dialogar, por exemplo, com quem, apesar de todas as evidências que a história vem ano após ano demonstrando, defende que a ditadura militar é apenas uma ilusão, um construto? E que o trabalho de reconciliação com o passado não passa de uma manobra política?

Enfim, participar de redes sociais na internet em 2014 não foi tarefa fácil quando o assunto foram questões sociais e políticas mais amplas, muito além das, muitas vezes, patéticas discussões eleitoreiras. Quem viveu um pouco das redes sociais em 2014 lembra da campanha “Eu não mereço ser estuprada”, lançada ainda em março, após a divulgação de dados de uma pesquisa em que a maioria dos entrevistados concordavam que os estupros eram ‘culpa’ das próprias vítimas. Com milhares de adesões, inclusive dos grandes veículos de comunicação, parecia um consenso generalizado de que nenhuma mulher, nem qualquer pessoa, por qualquer motivo que seja, merece ser vítima de estupro. Consenso, mas não tanto.

estupro

Enquanto alguns lutam por bandeiras que deveriam ser óbvias (repúdio ao estupro) e sofrem as consequências de sua práxis, outros se valem do possível anonimato das redes sociais para fazer o oposto. Temos, de um lado, a possibilidade do anonimato nas redes sociais, que encoraja atitudes covardes; mas ao mesmo tempo temos a certeza de que estamos longe de um modelo social com respeito aos valores básicos. E, nesse ano, as redes sociais tiveram papel importante para mostrar as pessoas — e suas ideias — como elas realmente são.

De março a dezembro, muita coisa poderia ter mudado no que se refere ao “merecimento” do estupro. Contudo, chegamos ao final de dezembro tendo que engolir discursos de que algumas pessoas não merecem ser estupradas porque são muito feias. Pior: temos que debater com os adeptos dessa opinião o porquê essa ideia não apenas é um equívoco (para não dizer uma afronta à liberdade individual) sexista, como também uma forma de ironizar uma situação tão cara em nossa sociedade — a violência contra a mulher. E, de quebra, uma forma de ‘incentivar’ outras formas de apologia ao estupro.

APESAR DISSO, ‘THE ZOEIRA NEVER END’

Apesar das questões emblemáticas e urgentes (as que apresentamos acima são apenas algumas delas) com as quais tivemos que conviver nas redes sociais em 2014, o trânsito pelo Facebook, Twitter e Youtube no ano que está encerrando também trouxe momentos de descontração, para quebrar o clima tenso do ano. Em grande parte, por dois grandes eventos do ano: a Copa do Mundo no Brasil e as eleições.

copa

A Copa (#nãovaitercopa versus #vaitercopasim) no  Brasil passou de evento que causou apreensão geral até a constatação de que foi a Copa das Copas – e da zoeira. Motivos e criatividade dos internautas não faltaram.

As eleições também foram generosas com os internautas no aspecto zoeira, principalmente os debates dos presidenciáveis. Teve até página criada especialmente pra isso e lista de todo tipo. A zoeira foi tanta que virou notícia nos principais portais de notícia do país.

O que aprendemos com as redes sociais em 2014? Que ainda temos muito o que aprender sobre convivência em rede, hipocrisia, política e história. Mas que sempre há espaço para a criatividade e descontração. Que em 2015 a convivência melhore, que tratemos com mais seriedade os assuntos sérios desse país, que façamos das redes sociais arena de luta das questões mais urgentes da nossa sociedade e que a zoeira exista, mas não desvie nosso foco do que é impossível varrer para debaixo do tapete do ciberespaço.