Arquivo da categoria: Crítica digital e midiática

O futuro ali na esquina

A Netflix sempre surpreende em seus comerciais na internet.

Dessa vez, a empresa apresenta o NetflixVista, um dispositivo “implantado” próximo ao ouvido e com uma lente de contato que permite ao usuário assistir a programação da Netflix sem precisar de nenhum dispositivo externo ao corpo. Uma solução fantástica para assistir a sua série favorita no ônibus, no meio de uma reunião chata e em outras situações cotidianas, sem chamar a atenção.

O vídeo, perturbador, lembra o conceito de pós-humano, em que as tecnologias se tornam efetivamente órgãos dos sentidos, e não apenas extensões do corpo. Em menos de três dias, o vídeo foi visualizado mais de 5 milhões de vezes no Facebook.

Pra sorte dos que se sentiram angustiados com o vídeo, uma boa surpresa: o NetflixVista ainda não existe. O vídeo é uma campanha da empresa, justamente para chamar a atenção de que, lá fora das telas, existe um mundo que também merece ser assistido, com suas histórias fantásticas e reais. E, ao final, o vídeo anuncia os episódios da serie Black Mirror, série original do Netflix que traz para o entretenimento os (des)caminhos de uma sociedade midiática e altamente tecnologizada.

Em outras palavras, o Netflix Vista ainda é uma ficção e o seu vídeo uma peça publicitária que em certa medida realiza uma autocrítica ao seu nicho de mercado, ao mesmo tempo em que promove um de seus produtos que também exerce essa crítica. Contudo, acessórios como o Netflix Vista e enredos como os do Black Mirror estão logo ali na esquina, em um futuro não muito distante, que pode “acontecer” a qualquer momento.

 

Boatos na rede, educação e competência midiática

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A proliferação de boatos na rede é causa de atritos, de brigas em família e discussões sem fim que só ajudam a fortalecer as bolhas ideológicas, cujos muros são intransponíveis. O trabalho do educador midiático, nesse contexto, é como o trabalho de Sísifo, em que muitas pedras rolam do alto da montanha.

Por Rafael Cunha*

 


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Boato de 2014, criado com uma montagem a partir de uma imagem de um portal de notícias verdadeiro: tem gente que até hoje acredita

Nesta semana, o doleiro Alberto Youssef — uma das personalidades centrais da operação Lava Jato, em função da delação de outros envolvidos — trocou a carceragem pela prisão domiciliar. Dois anos atrás, ele havia sido morto, envenenado no fim de semana das eleições gerais, por suposto, antes que delatasse outros políticos poderosos. A notícia de agora é verdadeira e pode ser comprovada por qualquer agência de notícia. A de dois anos atrás, não, e era respaldada em uma montagem mais ou menos de baixa qualidade. A notícia de agora, verdadeira, quase não ganhou importância dos veículos de comunicação e possivelmente seja de desconhecimento de grande parte da opinião pública. A notícia de dois anos atrás, falsa, quase causou um furor nacional, embora tenha sido desmentida em poucas horas pelos médicos e pela família do suposto assassinado. Aliás, mesmo sendo desmentida, a crença no boato persistiu por mais um tempo em que o boato continuou circulando. Quiçá ainda hoje alguém mantenha o boato como notícia verdadeira. É aí que entra a complexidade para a atuação do educador midiático.

Tal como o destino de Sísifo, personagem da mitologia grega, astuto mortal que enganou a morte e que por isso foi condenado a passar a eternidade rolando uma pedra para o alto de uma montanha, até que ela rolasse de volta para a base, assim tem sido o trabalho exaustivo de quem trabalha com as mídias para o desenvolvimento de competências midiáticas. É possível que, no início da emergência da Web 2.0, não se vislumbrasse um trabalho tão complexo para a educação midiática do que o que se coloca nos dias atuais: a preocupação, há 10 anos ou pouco mais, ainda estava muito mais centrada no domínio técnico das ferramentas, para seu uso e produção de conteúdos e na analise crítica dos conteúdos midiáticos, na época, veiculado quase que exclusivamente pelos meios de comunicação de massa. Talvez, àquela altura, fosse demasiada preocupação o fato de que, como se coloca hoje, as próprias pessoas comuns estariam desenvolvendo conteúdos sem o mesmo cuidado (ou com as mesmas intenções perniciosos) necessário que, no fim das contas, servem muito mais à manipulação do que à informação; um desserviço à sociedade do que uma utilidade cultural. Há novos e complexos ingredientes quando se faz uma crítica à “mídia” nos dias atuais: nós, pessoas comuns, também somos “a mídia”.

A questão da competência midiática e da educação com, na e para as mídias é, sobretudo, um exercício de paciência. E um exercício sem fim, uma tarefa de Sísifo: por mais que se avance na discussão sobre a importância de verificar a fonte da informação antes de acreditar no que se vê nas redes sociais e, principalmente, antes de colocar novamente o conteúdo em circulação (o famoso “compartilhar”, que se tornou quase uma necessidade de sobrevivência), cotidianamente nos deparamos com uma infinidade de boatos, distorções, montagens grotescas ou qualquer outra coisa que, no limite, só tornam a rede um lugar mais estéril de se habitar por aqueles que, minimamente, se pretendem ser críticos.

Para o educador midiático, a desolação é ainda maior quando um ente próximo adere à onda do “primeiro publico, depois me importo com a veracidade do conteúdos”. Então, o estrago já está feito. Trata-se de uma imprudência sobre a fata de mensuração das consequências inconsequentes de um ato aparentemente ingênuo — compartilhar. Mas também se trata de um resultado nefasto do analfabetismo midiático que, parece, generalizado (por mais contundente que isso possa soar): ela não afeta apenas os indivíduos com baixa escolaridade ou instrução, mas é própria do universo de pessoas estudadas, de jornalistas a advogados — o exemplo emblemático mais recente é o boato disseminado pela advogada e professora da USP, Janaina Paschoal, de que a Rússia estaria se preparando para invadir o Brasil; nesse caso, nem uma pessoa supostamente intelectualizada, com formação em doutorado, está imune à histeria coletiva ou isenta de praticar a boataria, que pouco tem a ver com racionalidade. O observador crítico vai perceber que o mesmo boato (por exemplo, a invasão do Brasil) é utilizado por grupos antagônicos para diferentes fins: se acontecesse “Y”, a Rússia invadiria o país; ou em caso de ameaça de “Y” acontecer, a Rússia invadiria o país para defender “Z”. Em qualquer um dos casos, portanto, a Rússia teria invadido o Brasil. Mas até agora, é mais plausível que brasileiros invadam a Rússia, não para uma guerra, mas para assistir à próxima Copa do Mundo de futebol masculino.

Esse é apenas um ínfimo exemplo de boato corriqueiro nas redes sociais, para desespero dos educadores midiáticos. Costuma-se consagrar o Facebook e o WhatsApp como portadores da disseminação de boatos, por serem redes sociais popularmente utilizadas. Mas o YouTube é um oásis de pérolas da boataria; algumas até bem convincentes, que podem confundir o indivíduo, mas que extrapola os limites do concreto, do racional quando se tem o mínimo de competência midiática para vislumbrar os contornos do plausível, do concreto e do fictício. Uma pesquisa corriqueira da expressão “invasão do Brasil” no YouTube basta como exemplo do assustador número de boatos e seu alcance na internet. Parece que esse é um território livre para cada um criar a fantasia que quiser, compartilhá-la como dado da realidade e, então… as consequências são improváveis, dependendo do alcance do vídeo: desde usuários da rede se digladiando em torno do tema, até as práticas que lembram aquela brincadeira “quem conta um conto aumenta um ponto” para endossar o conteúdo. Espalhe-se um boato, em determinado grupo, que há uma conspiração para algum país vizinho invadir o Brasil e logo aparecerá nos comentários alguém jurando que viu tropas estrangeiras se mobilizando na fronteira, portanto, uma testemunha ocular que comprova que o boato é verdadeiro. Mas o mais importante (e perigoso): esse não é um fenômeno nada novo. A boataria já era um obstáculo à democracia, pelo mal-estar da opinião pública, há 2.500 anos em Roma. Voltaremos a esta questão depois. Antes, precisamos falar das competências midiáticas para o tempo presente.

Há um hiato que chega a ser paradoxal: qual o limite entre a crítica sobre um determinado produto midiático e o efeito que ele exerce sobre mim e que influencia as minhas práticas?

Píer Rivoltella, um dos pesquisadores de mídia-educação de influência no país, há mais de uma década alertava sobre a questão da necessidade de desenvolver competências midiáticas e fazia uma alusão à relação dos professores com a televisão. Para ele, todo mundo, genericamente falando, faz críticas aos conteúdos (e suas formas) da TV, mas paradoxalmente todo mundo assiste a esses conteúdos com certa regularidade. Parece claro que entre a crítica, racionalizada, em um momento de distanciamento, e o consumo cultural que se realiza em um momento de distração, entretenimento, ou seja, em um momento em que não estamos com “olho vivo, faro fino e pé atrás” — aludindo àquela canção de Humberto Gessinger — há um hiato que chega a ser paradoxal: qual o limite entre a crítica sobre um determinado produto midiático e o efeito que ele exerce sobre mim e que influencia as minhas práticas? É esse hiato, esse espaço de mediação, que parece cada vez mais nebuloso. É nesse espaço que reside a importância de atuação do educador midiático. É aí onde se realizar o trabalho de Sísifo: interminável e com poucos progressos.

Acrescenta-se a essa questão outros problemas sociais enraizados em nossa cultura: a falta de uma verdadeira inclusão digital, coexistente com acesso amplo da população aos recursos digitais e multimidiáticos; o analfabetismo funcional; a presença quase cristalizada (um habitus, nas perspectiva bourdieusiana) de uma cultura de dominação simbólica ou não. E o principal desafio da educação digital: o fato de grandes parcelas dessa massa de indivíduos estarem inseridas, compulsoriamente, em uma cultura que emerge tendo por base a co-produção de conteúdos digitais, mas sem as oportunidades educacionais e culturais prévias que lhes permitam não apenas o acesso, mas a alfabetização midiática — aqui entendendo alfabetização no sentido freireano de alfabetização de mundo.

Ainda faltam, ao que parece, pesquisas acadêmicas que mostrem as motivações desse tipo de comportamento de compartilhar qualquer coisa à qualquer custo, desde que a pessoa se identifique com a “causa”. As motivações das fontes geradoras podem até ser mais facilmente identificáveis: insuflar a opinião pública contra um determinado grupo de pessoas (ou conta um indivíduo em particular) que representam ou expressam um determinado conjunto de pensamentos. É possível e provável que um boato gere outros boatos e ajude a cristalizar certos discursos contra esses grupos. Seria necessário, portanto, uma genealogia desses boatos em rede. Aqueles que são contra grupos políticos ou ideologias que elas carregam podem ser mais facilmente possíveis de identificar e uma hipótese plausível dessa genealogia é a de que a origem dos boatos não tenha sido contra um indivíduo, personificadamente, mas o conjunto de valores, crenças e ideias que ele representa. A história ensina que as ideias sobrevivem aos indivíduos, mas isso nunca foi motivo para que se parasse de agredir e assassinar indivíduos que portam certas ideias. O alvo político da boataria na internet caminharia nesse sentido: na impossibilidade de atacar ideias, atacam-se pessoas, na possibilidade de atacar ideias, faça. Talvez o exemplo mais assustador seja o constante ataque aos “direitos humanos”, como se fossem uma pessoa ou algum tipo de organização social, e não aquilo o que são: um conjunto de direitos de todas as pessoas. Os boatos que têm como alvo os “direitos humanos” é o tipo de ataque irracional a si próprio. No entanto, os boatos que não têm aparentemente uma carga ideológica ou política e que, aparentemente, só servem para instaurar algum tipo de caos, esses ainda precisam ser explicados por alguma ciência, que talvez nem sejam as da comunicação.

As calúnias e boatos já eram um problema social e político em Roma, nos tempos da república. O que mudou de 2.500 anos para cá é apenas a arena em que esses boatos se estabelecem. A praça pública não saiu de cena, mas a internet a sobrepujou.

Por sua vez, nem se pode dizer que esse é um fenômeno típico da cultura digital: as calúnias e os boatos já eram um problema social (e político) desde a época de Roma, como nos lembra Maquiavel. Um problema tão grande que levou a alterações nas leis e na própria estrutura política da república romana. O que mudou em 2.500 anos, portanto, é apenas a arena em que os boatos se disseminam. Mas essa mudança de arena possui um agravante: se antes, nas sociedades estruturalmente menores, era menos dificultoso identificar as fontes geradoras de um boato e elas estavam mais próximas de pessoas que detinham ou não algum tipo de autoridade, o rastreamento, o julgamento e, conforme o caso, a punição, eram mais facilmente colocados em ação. Foi assim que surgiram as leis do direito de acusação pública em Roma. Já na arena das redes sociais, apesar de não estarem imunes ao arcabouço jurídico e legal que pode ser acionado em muitos casos, as consequências são ainda mais perniciosas do que aquelas a que Maquiavel se referia: a arena é mais ampla e mais fluida; ela se estende do espaço on-line para o off-line e faz o caminho de volta, num movimento espiral e quase incontrolável. A penetração do boato é mais imediata e seus efeitos mais duradouros: os links, os memes, as referências se proliferam e persistem na rede mesmo após a morte do boato (por esquecimento ou por desmentimento).

Mas o boato também deixa uma “herança”: aqueles que não estiveram no centro do alcance do boato podem ter acesso tardiamente aos seus fragmentos, meses, quem sabe anos depois. E se esse indivíduo não tiver a competência midiática, pode reiniciar o ciclo do boato, espalhando-o para outras bolhas (ou os nós das redes sociais) que originalmente também não haviam tido acesso a ele. E dependendo do fragmento encontrado, do nível de acesso ao boato original e, claro, de senso crítico, pode haver um novo boato, remixado, distorcido, haja vista que a remixagem está na base da co-produção de conteúdos típica da cultura digital. Diferentemente da praça pública romana, as arenas das redes sociais têm uma certa memória, com suas vantagens e desvantagens, que pode tornar o ciclo de um boato interminável, cujas repercussões, para as vítimas, podem ser permanentes: não é à toa que o cyberbullying tem efeitos muito mais catastróficos do que o bullying tradicional e que já tem em sua conta uma variedade de casos de suicídio. Se em um contexto ‘analógico’, um nudes [1] tinha um alcance mais ou menos limitado no tempo e no espaço e dificilmente era reproduzível, o mesmo fenômeno na cultura digital ganha proporções indeletáveis, dado o grau de alcance (imediato) no espaço, o grau de replicação e reprodução do conteúdo e suas remixagens [2].

Há, ainda, um outro elemento do boato em rede que torna mais difícil o seu desmantelamento e que repousa na questão da ubiquidade. A mobilidade, mais precisamente, o uso de dispositivos móveis, colocou novos elementos no rito da conexão e no alcance dos conteúdos digitais. Os grupos de WhatsApp nos quais circulam áudios cuja autoria se perdeu, de compartilhamento em compartilhamento, são o exemplo mais banal desse movimento. A ubiquidade atua nesse sair do on-line, penetrar no off-line e entrar de novo em rede sem um rito de conexão, um atuar simultâneo em diferentes espaços, uma espécie de onipresença que serve como portador do transbordamento de conteúdos de uma para outra ambiência. No caso do boato, esse movimento pode ser catastrófico, visto que esse “sair” da rede apaga os seus rastros, mas continua circulando na rede social off-line. Comparado com a praça pública romana, a rede social digital é muito mais poderosa nesse sentido, operada pela mobilidade, pelo duplo movimento da ubiquidade e por um espaço multimensional cujo alcance do conteúdo só pode ser estimado estatisticamente, com amplas e desconhecidas repercussões qualitativas para a psique humana, individual ou coletiva.

Ainda, existe a questão da autoridade. Um boato bem formulado em termos de forma (como o ilustrado na imagem sobre a suposta morte do até agora vivíssimo Alberto Youssef), com aparência de notícia verdadeira, pode enganar à primeira vista até aos não-adeptos de boatos. No caso dos áudios de WhatsApp, basta o locutor ter uma entonação convincente e dizer que é o Major Peçanha, comandante da divisão do exército da fronteira, que o ouvinte menos desprovido de senso crítico pode realmente achar que o exército russo escondido na floresta amazônica está prestes a invadir o Brasil e que, enquanto cidadão brasileiro, é seu dever passar aquela mensagem adiante (nunca fica muito claro qual a finalidade de passar a mensagem adiante, mas esse é outro tema que merece uma análise à parte). Em ambos os tipos de casos, está posta uma autoridade no boato, mesmo que a autoridade não seja comprovada como existente, ou seja, mesmo que não exista autoridade para respaldar o conteúdo. Mas mesmo que existisse, de fato, uma pessoa ou organização “real” com autoridade sobre o assunto, em tempos de internet há uma crise ou inversão de autoridades talvez sem precedente. E aqui não estamos nos referindo a autoritarismo. Estamos falando de quebra de credibilidade ou mesmo de inversão de autoridade, não em função da propriedade sobre um determinado assunto, mas de com qual tipo de ideologia essa ‘autoridade’ se identifica em relação ao tema do boato. Isso explica porque, em certa medida, os médicos ou a família do doleiro Alberto Youssef não tiveram “autoridade” suficiente para desmentir o boato de sua morte, ao menos num primeiro momento ou entre alguns grupos.

É possível dizer que nunca houve tantas possibilidades técnicas de se manter bem informado em conflito com as dificuldades concretas disso. Estão em xeque as teses da sociedade da informação que defendem que um acesso maior às informações conduziria a sociedades com indivíduos mais bem informados. As dificuldades concretas residem na baixa alfabetização midiática da população.

Esse jogo de forças é interessante sob muitos aspectos, pois estamos diante de um fenômeno novo no qual, ao final das contas, existem pessoas comuns que passam não apenas a acreditar em um boato, mas a defender a legitimidade do boato com uma certa autoridade sobre ele; mesmo que não tenham as condições materiais ou concretas para comprovar a origem da fonte ou a veracidade da informação. Este é um tema que as ciências humanas e sociais ainda precisam investigar melhor. A novidade consiste justamente no fato de que, com as redes, as possibilidades de uma consulta sobre a veracidade da informação foram ampliadas, antes de se cair nas armadilhas da rede de boatos. O paradoxo é que, se antes o controle das informações ficava circunscrito a um grupo privilegiado de pessoas (o que tornava mais fácil a manipulação das massas indivíduos), com a democratização do acesso às informações, esse não seria, em tese, um obstáculo ao cidadão bem informado. Dominique Wolton, em seu Internet, e depois?, centra suas análises justamente nesse sentido, na contracorrente das teses que defendem que mais acesso a informações resultaria, inexoravelmente, em uma sociedade com indivíduos mais bem informados, o que a cada dia tem se mostrado falso. O paradoxo do tempo presente, nesse caso, lembra o que Boaventura de Sousa Santos fala sobre o desenvolvimento do mundo: nunca houve tantas possibilidades técnicas, mas em choque com as impossibilidades políticas.

cultura

Nem o novo ministro da cultura fica imune aos efeitos dos boatos ou, nesse caso, à falta de consequências midiáticas. Em 2012, o site de humor G17 “informou” que, a pedido da ex-presidente Dilma Rousseff, as notas de R$ 1,00 teriam a frase “Deus seja louvado” (que, por sinal, é uma ironia num Estado laico) fosse substituída por “Lula seja louvado”. A reação do atual ministro da cultura no Twitter foi imediata e beirou o ridículo, haja vista que a própria “notícia” do site de humor dava o tom anedótico do assunto: “‘Nem Deus, nem Zeus, nem Goku nem Galileu, coloquem o nome do Lula’, teria dito a Presidente Dilma para encerrar a confusão”, dizia a sátira. O exemplo é emblemático, hoje, pelo anúncio de Freire como o homem a comandar a cultura no país. Mas existem outros igualmente anedóticos. Nesses casos, até as matérias do notório site Sensacionalista, às vezes, são confundidas com notícias reais, o que mostra o quanto o campo de atuação do midiaeducador é vasto, amplo e com as mais variadas dificuldades a serem contornadas.

 

Não é exagerada a hipótese de que a criação e disseminação de boatos é um novo nicho de mercado, que encontrou terreno fértil nas redes sociais. Muitos grupos e páginas especializadas em, simplesmente, fazer fofoca, podem ser facilmente encontrados na internet. São nichos de mercado à medida em que aparecem como “links patrocinados”, o que imediatamente coloca a questão: quem patrocina um boato (muitas vezes grotesco) e com qual finalidade? E aqui não estamos nem nos referindo somente a páginas supostamente jornalísticas que distorcem ou editam acontecimentos, nem a grupos de militância ideológica que mostram apenas a sua versão da história; mas a agentes (indivíduos, grupos, organizações) que se especializaram em plantar notícias falsas, com pouca aderência aos acontecimentos concretos. Trata-se, em certa medida, de um tipo de arremedo mais elementar e bizarro dos tabloides, os quais muitos veículos de comunicação se tornaram [3].

Por fim, a cultura do compartilhamento em si mesmo que está se estabelecendo nas redes sociais possui outro aspecto danoso, quando se refere a notícias falsas e/ou boatos: nem todo conteúdo pernicioso pode ser enquadrado como crime, embora as consequências dos seus danos sejam duradouros. Não no dano entendido pelos juristas, mas no dano à inteligência, à intelectualidade, à própria cultura. Há algumas opiniões de que a internet abriu as porteiras da ignorância (Umberto Eco quase foi novamente morto quando sua entrevista nesse sentido ganhou visibilidade no Brasil). Com a diluição da autoridade, é comum ler comentários de cidadãos medianos dizendo que o entrevistado fulano não sabe de nada, mesmo que esse fulano entrevistado tenha um pós-doutorado e faça pesquisas naquela área há 20 anos. Ou ainda, é corriqueiro cidadãos comuns, entre eles adolescentes, chamando essas personalidades para o debate nos comentários de alguma notícia, querendo, talvez, provar sua autoridade numa suposta vitória em um fórum de internet — algo que lembra os duelos de vida ou morte em tempos passados, que achávamos menos civilizados [4].

Essas questões, colocadas acima, são ainda campo fértil para investigação acadêmica, mas também, como exposto no início do texto, um desafio permanente e cansativo ao educador midiático, dada a repetição e as tentativas fracassadas de constituir uma rede mais politizada. Um autêntico trabalho de Sísifo. Mas, diferente da mitologia, mais de uma pedra está rolando montanha abaixo. E com elas, talvez, toda a prospecção utopista feita em torno de uma sociedade cibernética e da emergência, em torno e por causa dela, de multidões inteligentes.


Notas
  1. Observa-se que o termo “nudes”, corriqueiro na atualidade, nem mesmo existia tal como conhecemos em períodos mais analógicos, ou seja, pré-internet.
  2. São notórias as disputas judiciais de celebridades para remoção de seus conteúdos íntimos da rede. Uma tarefa quase impossível, pois uma vez postada, não há mecanismos que impeçam alguém de ter feito o download para circulação extra-rede ou em ambiências de difícil rastreamento, como a deep web. Por sua vez, não são notórios os casos de pessoas comuns que estão na mesma situação e que, portanto, ganham menos visibilidade que as celebridades. Em ambos os casos, acrescenta-se um agravante, propriamente das remixagens. Em muitos casos, como nos de fotos íntimas ‘vazadas’ para a internet, páginas e usuários aumentam o alcance por meio de montagens de outras fotos. Alguém que tenha uma foto íntima vazada, por exemplo, pode ver esse número ampliado para tantas quantas forem possíveis, desde que se encontrem modelos fisicamente parecidas. Obviamente esse fenômeno é quase tão antigo quanto à própria fotografia. O famoso caso das fotos da Princesa Diana, pouco antes do casamento com o Príncipe Charles, pode ser considerado um exemplo clássico. A questão é que com o alcance da rede, esse fenômeno saiu do controle.
  3. Os resultados de uma prática de alfabetização midiática pode ser encontrado no trabalho de grupos como o Caneta Desmanipuladora. A partir do entendimento de que a forma como são noticiados os acontecimentos partem de vieses políticos e ideológicos do jornalista ou do grupo de comunicação para o qual trabalha, a prática do Caneta Desmanipuladora consiste em reescrever manchetes de jornais e revistas, dando transparência à informação, e despindo as sutilezas várias vezes utilizadas pelos jornalistas. Mas, para além dessas manchetes, de veículos de comunicação que se pretendem isentos, outros veículos de comunicação tradicional não têm a mesma parcimônia em demonstrar que, de fato, deixaram de fazer jornalismo para fazer fofoca. No Brasil, o caso mais emblemático é a decadência evidente da Revista Veja, uma das mais importantes publicações sobre política e economia, mas que assumiu seu descompromisso com o conceito de jornalismo, chegando a publicar matérias completas com base em boatos e praticando o “quem conta um conto aumenta um ponto”, ou seja, ampliando os boatos a partir de um boato inicial.
  4. Uma evidência desse comportamento perigoso entre os jovens tem sido cada vez mais corriqueira na internet. Tem sido comum encontrar comentários de jovens e adolescentes que “chamam par o debate” seus supostos oponentes. Emblemático é o caso de um adolescente que não concorda com a colocação, em um vídeo no YouTube, do professor Leandro Karnal, sobre o esvaziamento da democracia na ditadura militar brasileiro: “Esse professor não aguenta meia hora de debate comigo”. Está posta uma inversão de autoridade concedida pelas redes, como se informar-se nas redes sociais seja suficiente para desconstruir a própria história. Mas também merecem atenção os comportamentos de “líderes mirins” de algumas páginas cujo financiamento é desconhecido, que não se contentam em contra-argumentar às ideias com as quais não concordam: tentam desqualificar o portador do discurso. Nesse caso, também tem sido comum o “chamar para o debate”, algo que, em função do tom do discurso, em algumas ocasiões pode ser traduzido como: venha para o duelo que eu acabo com você. As ideias se perderam; o que importa é derrotar o oponente. Sua morte, mesmo que simbólica, é um desejo tão bárbaro quanto os daquelas sociedades em que os líderes eram construídos em um duelo de pistolas ou de espadas, uma espécie de “faroeste caboclo high-tech“.
 *Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador na área de educação, cultura digital, trabalho e tecnologias.

Opinião: Não temos maturidade para o Facebook

Por RENATO ESSENFELDER
Blog Estadão, 20 junho 2016 | 15:18.
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Arte: loro verz (Estadão)

A rede virou um espelho de Branca de Neve moderno. Não é má em si, mas se alimenta de nosso mal profundo.
Está sempre a mostrar que alguém é mais bela do que você, mais rica do que você, mais feliz do que você… que não sabe lidar com isso.

»Não temos maturidade para o Facebook. Talvez a mais fantástica ferramenta de comunicação já criada: rápida, fácil, acessível, flexível. Você pode ter descoberto este texto pelo Facebook. E então pode comentá-lo, compartilhar; até filosofar, fazer destes bytes uma conversa de bar. Se não gostar, insista navegar: achará bilhões de outros textos pela rede, facilmente, e quem sabe o que mais.

É mais ou menos assim que a maioria dos meus colegas vê o Face. Incrível instrumento para compartilhar conteúdos, encontrar pessoas, estudar, conhecer, bater papo. A revolução pode não ser televisionada, como dizem, mas certamente será facebookeada.
Eu, no entanto, como naquele poema do Fernando Pessoa, eu torto e sem graça, o único que não é príncipe na tabacaria, tristemente discordo. O Facebook, as redes sociais em geral, poderiam ser uma maravilha emancipatória. Poderiam. Não são.

O que vi nestes anos de rede social, comparados à minha juventude préfacebook,
é desalentador. As crianças de dez anos já o sabem. A gente não tem coragem de “falar na cara”, mas, na frieza das teclas, espalha os maiores absurdos. Vomitam preconceitos, ódio,
incompreensão. A terrível inveja, o querer destruir aquilo que não se tem. A rotina.
Nas telas, sem filtros e sem empatia, cometemos os horrores que pessoalmente não ousaríamos.

Não temos maturidade para o Facebook. Num outro mundo, talvez, as coisas fossem diferentes. Gostaríamos de dialogar, discutir civilizadamente. Saberíamos usar a rede para outra coisa senão massagear nossos frágeis egos, perseguir implacavelmente uma
aprovação que não virá. Seríamos menos hipócritas, mais sinceros. Em outro mundo.
Neste, o que fizemos com as redes sociais? Espelho mágico de vaidade e ambições, o Facebook é um espelho de Branca de Neve moderno. Não é mau em si, mas se alimenta de nosso mal profundo. Um espelho deformado que está sempre a mostrar que alguém é
mais bela do que você, mais rica do que você, mais culta do que você, mais feliz do que você… que não sabe lidar com isso. Um alguém, claro, fantasmagórico, que só existe ali, no espelho.

Não importa, o efeito é o mesmo. Confrontados com um mundo de fantasia, liberamos as porções mais sombrias do ego. Espalhamos maçãs envenenadas por chats, mensagens, posts, vídeos, fotografias. Às vezes, um inocente morde. É pena – poderíamos ser tão
melhores, mas:
Não temos maturidade para o Facebook.«

 

Disponível em: http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/renato-essenfelder/nao-temos-maturidade-para-o-facebook/

O que há de infantil nos filmes infantis? Morte violentas como temas

Desenhos infantis parecem ser uma boa e segura opção para crianças assistirem num fim de noite, por exemplo, certo? No entanto, um estudo realizado por pesquisadores britânicos e canadenses e publicado na revista científica British Medical Journal no final de 2014 comparou a violência mostrada entre desenhos infantis e filmes de terror para adultos e chegou a uma conclusão surpreendente: as crianças estão expostas a mais morte e violência do que os adultos. O que nos leva a pensar na seguinte questão: o que há de infantil nos filmes infantis?

infantil

Essa é uma questão central para correntes dos estudos culturais que analisam o consumo cultural infantil em filmes, desenhos e animações destinadas às crianças. Questões estéticas, relações de gênero e étnico-raciais, mensagens subliminares ao consumismo e violência são alguns dos eixos centrais dentro dessa abordagem.

Henry Giroux, um dos mais importantes pesquisadores da área, tem inúmeras publicações sobre o tema, principalmente exercendo uma crítica à indústria cultural do universo Disney. Entre seus trabalhos mais conhecidos estão “Rato que ruge – Disney e o fim da inocência” e “A disneyzação da cultura infantil”, esse último, um dos capítulos do livro “Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais”, organizados por Tomaz Tadeu da Silva e Antônio Flávio Moreira. No Brasil, Ruth Sabat com o texto “Mocinhas estranhas e monstros normais nos filmes da Disney” (publicado no livro A cultura da mídia na escola: ensaios sobre cinema e educação, organizado por Maria da Graça Jacintho Setton) segue a mesma linha de contestação.

Blogs sobre cultura pop fizeram suas próprias listas sobre momentos sombrios ou sinistros de animações e desenhos voltadas para o público infantil. Alguns deles com cenas dos filmes mencionados (algumas foram removidas do Youtube, mas é possível localizar vídeos relacionados para quem tiver interesse):

Os 13 momentos mais sinistros de filmes da Disney e da Pixar, segundo o site IGN — a maior rede de youtubers de games do país (2015).

Os 1o momentos mais assustadores da Disney, publicado pela Disney Brasil (2014), mas citando cenas muito mais, digamos, sutis.

As 12 cenas mais sombrias de animações da Disney, (2012) publicado no Blog Monte Olimpo (sobre cinema e séries) e contendo vídeos das respectivas cenas.

10 momentos “sinistros” de filmes da Disney, (2011), publicado no blog de curiosidades Hype Science.

Algumas cenas são tão clássicas que se repetem em mais de uma lista. E também servem de mote para a compilação publicada em um vídeo no Youtube por um canal que se dedica a cinema e animações sobre os “momentos tristes e sinistros” de desenhos da Disney.

 

***

Dando ares mais acadêmicos à temática, o estudo mencionado no início do post (publicado na British Medical Journal), de autoria de Ian Colman e James Kirkbride, analisa a violência e as circunstâncias que envolvem mortes violentas em 45 produções de maior bilheteria destinadas ao público infantil, desde “A Branca de Neve e os Sete Anões” (1937) até “Frozen – Uma aventura congelante” (2013).

Os pesquisadores compararam, também, as mortes dos personagens principais dos filmes infantis com outros filmes adultos, também de grande bilheteria, nos mesmos anos, como “O Exorcismo de Emily Rose”, “Revelação”, “Pulp Fiction – Tempos de Violência”, “Os Infiltrados”, e “Cisne Negro”. Nos desenhos infantis, os personagens principais têm 2,5 vezes mais chances de morrer do que um personagem principal em um filme adulto. Já as chances de os pais dos personagens principais morrerem, segundo o estudo, foi cinco vezes maior em filmes infantis, comparados aos filmes adultos analisados.

As mortes em desenhos animados têm uma linha comum de violência: nos primeiros quatro minutos de “Procurando Nemo”, a mãe de Nemo foi devorada por uma barracuda, e cerca de quatro minutos de “Tarzan”, seus pais foram mortos por um leopardo. A lista de mortes comoventes é ampla, e envolve tanto mortes por arma branca (em “A Pequena Sereia” e “Bela Adormecida”) quanto por tiros (“Bambi”, “Pocahontas” e “Peter Pan”, por exemplo), além de cinco mortes por ataques de animais (“Vida de Inseto”, “Os Croods”, “Como Treinar Seu Dragão”, “Procurando Nemo”, “Tarzan”), sugerindo mortes macabras são comuns em filmes para crianças.

Os pesquisadores também relataram que não encontraram nenhuma diferença nos níveis de violência entre 1937 (“Branca de Neve”) e 2013 (“Frozen”) nos filmes infantis da Disney, que em comparação são filmes de adultos que mostram uma menina assombrada. O estudo também destaca as mortes violentas nos desenhos infantis e cita o exemplo da “Branca de Neve”, em que a Madrasta (a rainha má) é atingida por um raio, cai de um penhasco e é esmagada por uma pedra, depois de ser perseguida por sete anões furiosos em busca de vingança.

Os autores do estudo identificaram, em sua amostra, que as causas mais comuns de morte nos filmes infantis incluem ataque e defenestração causadas por animais, o que poderia levar as crianças a desenvolver potencial temor a animais, alturas, ou ambos. Já as mortes por assassinato, em taxa maior do que as de filmes direcionados para faixa etária adulta, segundo os pesquisadores podem ser particularmente traumática para os jovens espectadores por causa de sua intenção inerentemente violenta.

Além de identificar que os pais (ou personagens que ocupem essa função) dos personagens centrais estão mais propensos a morrerem no início da trama, os pesquisadores também identificaram que os antagonismos entre os bons e os maus nos filmes infantis perpassam uma complexa implicação moral em função das mortes: a justificativa moral duvidosa de que “bandidos merecem morrer”.

Os pesquisadores avaliam que os filmes de animação para crianças, ao invés de serem alternativas inócuas para a carnificina típica de filmes americanos, são de fato focos de assassinato e caos. E alertam os pais que as classificações indicativas vinculadas aos desenhos animados não significa que seus filhos terão uma experiência de visualização livre de violência.

Por fim, acerca da morte violenta nos filmes infantis, os autores destacam o que já se sabe sobre a temática: que as crianças pequenas não têm uma compreensão completa do conceito de morte; que a morte é um tema comum em filmes norte-americanos e que as crianças assistem muitos filmes. A este estado da arte, o estudo de Colman e Kirkbride acresenta que personagens importantes em filmes de animação para crianças morrem mais rapidamente do que personagens importantes em filmes destinadas a adultos; que as crianças que assistem filmes de animação são frequentemente expostas a cenas de assassinato e não são poupadas de assistirem causas horríveis (o potencialmente traumática) de morte, como tiros, facadas, e ataques de animais.

Você pode conferir, em inglês, a versão do artigo publicado por Ian Colman e James Kirkbride:

CARTOONS KILL: casualties in animated recreational theater in an objective observational new study of kids’ introduction to loss of life.

Uma versão resumida desse texto foi publicada anteriormente na página do Facebook do Mídias, Educação e Tecnologias, em 18 dez. 2014.

Linguagens líquidas, projetos voláteis

Todos os anos a editora, que pertence à Universidade de Oxford, no Reino Unido, escolhe a palavra que melhor representa os sentimentos ou as preocupações do ano e que, de acordo com o júri, será também uma palavra com “potencial duradouro” e “significado cultural”. A palavra do ano, pela primeira vez, não é uma palavra – é uma imagem. Além disso, é um emoji, símbolo usado para expressar sentimentos e emoções. Enquanto tem gente criticando o resultado, eu prefiro ficar com o recado: (pelo menos) em 2015 as pessoas estão preferindo imagens às palavras e emoções à frieza da objetividade. (Talita Rosa, jornalista do Grupo RBS, via Facebook).

emoji

Um emoji, pela primeira vez, é escolhido a “palavra do ano” pela Oxford

É consenso e senso comum que a cibercultura instaurou novos processos comunicacionais, mediados por tecnologias digitais e móveis. A possibilidade de combinar texto, som e imagem trouxe novos ingredientes para o debate sobre a comunicação contemporânea, seja na linguística, na semiologia ou na educação. Não são apenas novas possibilidades de se comunicar, com novos códigos para além do alfabeto formal: as inovações ocorrem de modo cada vez mais intenso e se apropriar de novos códigos e signos da comunicação ubíqua passou a ser sinônimo de sobrevivência.

O internetês, por exemplo, foi e continua sendo pedra no sapato de muitos professores no que se refere à escrita dos alunos e aos dilemas que emergem dessa comunicação. Mais recentemente os memes da internet deram a tônica da comunicação mediada por tecnologias digitais. Os gifs, presentes desde os primórdios da web, ressurgiram graças a aplicativos baseados em Tumblr. O site “Como eu me sinto quando…” talvez seja o melhor exemplo dessa forma de comunicar e expressar sensações e emoções. Até mesmo o Facebook, que segundo boatos não permitiria o uso de gifs em suas páginas e perfis de usuários, esse ano passou a permitir esse tipo de aplicação. E, por fim, emoticons e emojis não apenas complementam a comunicação escrita (com ou sem internetês), mas às vezes é, nos aplicativos de mensagem de Skype, do Facebook ou do WhatsApp, a própria mensagem, sem uso de palavras.

Esse cenário comunicacional líquido, fluído e móvel (como alerta Lucia Santaella em suas obras Linguagens líquidas na era da mobilidade [2007] e A ecologia pluralista da comunicação: conectividade, mobilidade, ubiquidade [2010]) coloca novos desafios tanto para quem lida com comunicação quanto para professores, imbricados na cultura digital, direta ou indiretamente. É isso o que Mônica Fantin propõe, já em 2012, em seu artigo sobre as multiliteracies na escola:

Os cenários da cultura contemporânea colocam diferentes desafios para o professor, que além da capacidade de escrever e ler, necessita emergir na cultura e dominar os códigos das diferentes linguagens. Nesse contexto, a educação para os media, entendida neste texto como mídia-educação, discute sobre as possibilidades educativas de ver, interpretar, problematizar e produzir os mais diferentes tipos de textos de forma crítica e criativa, utilizando todos os meios, linguagens e tecnologias disponíveis. Considerando que os media não podem mais estar excluídos de um processo de alfabetização, precisamos pensar sobre o que significa estar alfabetizado no século XXI e isso implica ressignificar os conceitos de literacia, media literacy e das multiliteracies.

No entanto, quando um emoji é escolhido por uma instituição tradicional como a Oxford para ser a “palavra do ano”, com potencial duradouro e significado cultural, outras questões mais complexas são inseridas no debate. Uma delas é a compreensão de que a linguagem paradoxalmente, à medida que está cada vez mais registrada no tempo, nas diversas plataformas digitais, está também cada vez mais volátil. Compreender essa volatilidade — em um contexto histórico em que o tempo cada vez mais se intensifica e que aumenta nossa sensação de estarmos sempre atrasados em relação ao presente — para os significados sociais que emergem da ubiquidade e da mobilidade parece ser uma questão cada vez mais urgente, quando pensamos no emoji que foi escolhido pelo júri como palavra do ano, concorrendo com palavras como “refugiado”, dentre outras.

De um lado, a volatilidade da linguagem significa a volatilidade de como vemos e nos posicionamos no mundo, uma vez que a linguagem é o que molda nosso pensamento e nos diferencia de outros animais. De outro lado, essa volatilidade expressa uma sociedade impaciente, com ausência de projetos de longo prazo (a esse respeito, ver A corrosão do caráter, de Richard Sennett) e que se traduz numa sociedade ansiosa e doente (a esse respeito, ver A sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han). Mais do que isso: combinado com identidades cada vez mais provisórias e mutantes, das quais Zygmunt Bauman nos fala, a customização e a personalização próprias da cultura digital parecem estar nos levando cada vez mais em direção ao individualismo (ou a projetos fragmentados e igualmente voláteis) do que a projetos de sociedade. Talvez isso explique porque um grande dilema da Europa, hoje (a questão dos refugiados) tenha um significado cultural — e portanto, coletivo — menos duradouro do que um emoji que representa “chorar de rir”.

Neste sentido, não basta dominar as técnicas das multiliteracies, mas desenvolver as competências multimidiáticas sob esse aspecto, incluindo as conotações políticas e sociais da comunicação no tempo presente. Isso inclui levar em conta a urgência, o excesso e a volatilidade da comunicação, que esvaziam as permanências e aceleram a necessidade do novo, enfraquecendo vínculos sociais e políticos mais abrangentes: todos ficaram chocados com o menino sírio afogado na beira da praia, mas quase ninguém lembra dele; e continuamos à espera do próximo evento para ficarmos chocados, sensibilizados, mudar nossa imagem do perfil do Facebook por dois ou três dias, até o próximo ‘evento’, e assim sucessivamente.

Por fim, a escolha de um emoji como palavra do ano lembra aquela piada involutiva: depois de desenvolver complexos códigos de linguagem no decorrer da história, a humanidade estaria voltando a se comunicar por imagem tal qual os humanos da Idade da Pedra, quando ainda não havia a técnica da escrita. O que remete a uma segunda questão: como a imagem é uma linguagem ‘menos precisa’ do que a escrita [a esse respeito, ver os problemas da semiótica presentes em Modos de Ver, de John Berger. Lembre que como seres imagéticos, ao lermos uma imagem somos sempre coprodutores dela, muitas vezes distorcendo seu sentido original, fora de contexto], estaríamos nos encaminhando para um período de excesso de comunicação, porém, com comunicação menos eficaz?

Conectividade e neoliberalismo: estamos doentes

O jornal O Estado de São Paulo publicou uma reportagem com o título: Excesso de informações pode prejudicar memória e tomada de decisões. Como o cérebro tem limites para a tomada de decisões, com a sobrecarga de informações no cérebro, a relevância dos dados na memória podem paralisar a pessoa. Em síntese, o que os cientistas estão descobrindo (ou só agora admitindo) é que o cérebro humano não é igual ao sistema de informação de uma máquina.

A reportagem chama a atenção para o estilo de vida contemporâneo, em que estamos “sempre conectados”, mas que isso pode ser prejudicial de diferentes formas. O estímulo às informações, ao invés de tornar o cérebro mais saudável e com um rol maior de dados para as pessoas utilizarem pode, ao contrário, trazer uma série de danos não apenas ao cérebro, mas para a saúde em geral — desencadeando as doenças tão comuns do nosso tempo, como stress, depressão, ansiedade.

A reportagem, por óbvio, pouco enfatiza o papel do modo de produção vigente como preponderante para o estado de doença a que nossa sociedade vem se submetendo, desde que o modo neoliberal é neoliberal. Com os construtos, primeiramente ideológicos, e depois formativos, a ideia de sociedade da informação foi sendo naturalizada no seio da sociedade capitalista para dar origem à ideia de sociedade do conhecimento, na qual o uso de informações e suas tecnologias se torna fundamental. Na esteira dessas noções, assistimos a emergência da cultura digital e dos nativos digitais, esses nascidos de pouca investigação empírica e muita observação cotidiana feita por Marc Prensky no já distante ano de 2001. Multitarefas, solucionadores de problemas, que aprendem a tomar decisões e a agir no mundo por meio de jogos de computadores (quanto mais intenso for o uso de jogos, melhor, para esse professor universitário que casualmente tem uma empresa de games), como é possível atestar no seu um pouco mais recente livro “Não me atrapalhe, mãe – Estou aprendendo” (2010), uma espécie de autoajuda para os pais e professores tolerarem e incentivarem suas crianças a, oras, jogar videogame e usar as tecnologias digitais!

Sociedade da Informação, Sociedade do Conhecimento, Cultura Digital, nativos digitais estão em um contexto que, obedecendo ao modo de viver e produzir no âmbito contemporâneo, converte nossa sociedade a uma “sociedade do desempenho”, que leva o ser humano ao limite de uma sociedade do cansaço e pode, com efeito, levar a uma sociedade da barbárie.

O conceito de sociedade da informação surgiu na década de 1970 no mundo empresarial. Na lógica do sistema de produção, a informação se converte em insumos e ela mesma em mercadoria — uma mercadoria extremamente importante para o século XXI. O desenvolvimento constante das redes tecnológicas e dos dispositivos de armazenamento de dados (lembre-se que há 15 anos o principal dispositivo de armazenamento de dados fora do computador era o disquete, com capacidade de míseros 3,44 MB, equivalente a uma música em MP3), primeiramente físicos (unidade externa de CD-ROM e depois HD externo e pen drives com grande capacidade de armazenamento) e, atualmente, on-line (o armazenamento “em nuvem”) é um traço significativo para refletirmos o quanto o armazenamento de dados/informação é relevante para a economia, no contexto da sociedade da informação.

O paradigma desse modelo de sociedade foi amplificado com a difusão da informática na virada dos anos 2000. A sociedade em rede, postulada por Manuel Castells no final da década de 90, foi ao mesmo tempo reflexo e catalisador de uma sociedade que se pretendia universal, homogênea, sob os auspícios da lógica neoliberal. Nos primeiros anos do século, no âmbito da educação e da cultura, a UNESCO tratou de renovar a centralidade das informações para o modelo de sociedade concebido por Castells, realizando várias conferências que, no final, resultou no Relatório Mundial Rumo às Sociedades do Conhecimento. Pela lógica da UNESCO, a informação se convertia em conhecimento — quase que ‘naturalmente’ — e, portanto, não deveria ficar de fora dos projetos educacionais dos países do bloco capitalista. A crescente incorporação das tecnologias digitais e móveis no mundo do trabalho e nos diversos segmentos da vida social, sob os auspícios da lógica neoliberal de viver e produzir, levou à aceleração do tempo, dos ritmos de trabalho e de acesso e uso da web e de sistemas informatizados. Conceitos como mobilidade e ubiquidade entram em cena para explicar o alcance das tecnologias digitais e móveis e nos deslocamentos espaço-tempo, dos quais qualquer pessoa com acesso à internet não consegue escapar imune.

Estar sempre conectado e ao alcance se tornou, em um primeiro momento, sinal de estar sintonizado com o tempo presente e suas características; algo cool, um novo estilo de vida (nerds e geeks nunca foram tão valorizados). Não demorou muito para os efeitos nocivos desse uso intenso das tecnologias ganhar o campo teórico e empírico nas ciências sociais e humanas.

Por detrás do aparente progresso que a sociedade da informação e do conhecimento representam se esconde os traços do inevitável: que essa também é a “sociedade do cansaço e do desempenho”. O excesso de informação já vinha sendo problematizado desde o início da década passada, de diversos aspectos. Tanto no que se refere à ‘utilidade’ de tanta informação, até sua reprodução exaustiva (o que é característico das práticas de compartilhamento nas redes sociais e da cultura “do ctrl c ctrl v” que se espalha por diversos blogs especializados em colocar a sua marca e o seu design em uma mesma publicação, da qual se perde e se desloca a noção de autoria em menos de 24 horas). A quantidade de informações às quais as pessoas são submetidas diariamente pelo uso intenso das tecnologias digitais e, mais especificamente, pela intensificação do tempo provoca uma série de sintomas patológicos oriundos do que o filósofo Byung-Chul Han chama de “excesso de positividade”: a violência da positividade que resulta da superprodução, superdesempenho ou supercomunicação”.

No recém lançado livro “Sociedade do cansaço”, Han afirma que “a violência da positividade não pressupõe nenhuma inimizade. Desenvolve-se precisamente numa sociedade permissiva e pacificada [na qual não existe impossível]”. Por isso essa violência é mais invisível — e nociva — do que outras. As doenças contemporâneas, como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limítrofe ou síndrome de Burnout são, para o autor, patologias sistêmicas causadas pelo excesso e pelo ritmo de vida deste século, da qual tanto os ritmos de trabalho quanto à superexposição as tecnologias digitais e móveis estão conduzindo a humanidade a uma sociedade do cansaço. A técnica temporal de ser multitarefa — a característica dos chamados “nativos digitais”, tão exaltada por partidários dessa corrente de pensamento — não traz, segundo Han, nenhum progresso no processo civilizatório: ao contrário, trata-se de um retrocesso, uma vez que modifica a economia da atenção, que se fragmenta e, no final, é destruída — algo que William Powers, sem a pretensão de ser científico, já havia anunciado em seu “O BlackBerry de Hamlet”: ultraconectadas, as pessoas estão fazendo várias coisas ao mesmo tempo, sem nenhuma profundidade; sem tempo para a contemplação e reflexão que só o afastamento da ‘ágora’ permite.

Han continua: “Não apenas a multitarefa, mas também as atividades como jogos de computador [outro item apreciado pelos admiradores dos nativos digitais] geram uma atenção ampla, mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem”. Na vida selvagem, o animal é obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades (comer e não ser devorado, por exemplo), por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo, nem no se alimentar, nem no copular. “Os desempenhos culturais culturais da humanidade […] devem-se a uma atenção contemplativa. A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda”, algo que não está sendo permitido a grandes parcelas da população, seja pelo ritmo de vida e intensidade do trabalho invadindo tempos e espaços de não-trabalho via dispositivos móveis, seja pelo excesso de atividades por meio das tecnologias digitais.

Além da ansiedade, que se manifesta em atitudes como ficar olhando toda hora o celular, ou checando se há alguma novidade no Facebook, esse tipo de comportamento multitarefa que afasta a atenção profunda, também leva ao tédio: a atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. Mais uma vez aqui a noção de mobilidade e ubiquidade fazem todo o sentido, pois pressupõe práticas bastante observáveis no cotidiano, como estar almoçando com alguém de olho no celular, conversando no WhatsApp e zapeando no Facebook ao mesmo tempo. A hiperatenção (ou atenção dispersa) não tolera o tédio, que não deixa de ser importante para um processo criativo.

Os focos de resistência a esse movimento são ainda muito tímidos. Mesmo o sono (o ponto alto do descanso físico e da reorganização mental) é acossado pela atenção, que se manifesta na forma de insônia. Movimentos como o ‘slow food’ ou o “nadismo” tentam fazer frente ao ritmo alucinante da vida contemporânea. Mas falta, pela lógica animalesca do modo neoliberal de viver e produzir, espaço e tempo não apenas para a contemplação, mas para o recolhimento, sem o qual o olhar perambula inquieto de um lado a outro e não traz nada a se manifestar. Nossa sociedade, pela intensidade do trabalho e pelo excesso de conectividade, está ficando doente.

Han resgata o pensamento de Nietzche para lembrar que “a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo”. Mais do que nossa sociedade estar cansada e doente, “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie”.

Fontes:
Byung-Chul Han – Sociedade do Cansaço (Vozes, 2015).
Jonathan Crary – 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono (Crary, 2014).
William Powers – O BlackBerry de Hamlet (Alaúde, 2012).

Excesso de informações pode prejudicar memória e tomada de decisões. O Estado de S. Paulo, 13 de outubro de 2015.

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Imagem: detalhe da capa do livro Infoproletários (Ricardo Antunes e Ruy Braga).