Arquivo mensal: janeiro 2017

Livro para download: Além das redes de colaboração

Baixe grátis o livro Além das redes de colaboração: Internet, diversidade cultural e tecnologias do poderAlém das redes de colaboração: Internet, diversidade cultural e tecnologias do poder, de Nelson De Luca Pretto e Sérgio Amadeu da Silveira (Organizadores)

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Reconhecidos no âmbito da educação pela defesa do software livre e da internet aberta, os professores e pesquisadores Nelson De Luca Pretto e Sérgio Amadeu da Silveira organizaram essa coletânea, em 2008, com participação de outros grandes nomes da pesquisa em comunicação e da cultura, como o cineasta Carlos Gerbase, o jornalista Marcelo Tas, além de Alex Primo e Léa Fagundes. Coerentes com sua militância pela internet livre e com a livre circulação dos bens culturais, os autores licenciaram o livro pela Creative Commons, o que permite uso da obra para fins não comerciais, incluindo a adaptação, a remixagem e a criação de outras obras elaboradas a partir desta.

Os autores definem a obra como sendo “fruto de um exercício de ‘decodificação’ das tendências culturais contemporâneas, em suas expressões artísticas, tecno-científicas e político-ideológicas, buscando desvendar as intrincadas tramas e seus algoritmos moleculares e globais, hoje condutores da biopolítica e das macroestruturas de poder”. O livro é resultado de seminários realizados pela Casa de Cinema de Porto Alegre e pela Associação de Software Livre, ocorridos no segundo semestre de 2007, como parte do projeto Cultura e Pensamento do Ministério da Cultura. Sérgio Amadeu, em seu blog, se reportando à obra, diz que o livro “trata do tema das redes em uma sociedade midiatizada, com tendências contraditórias e ambivalentes. Discute as possibilidades democratizantes de compartilhamento do conhecimento jamais vistas e a formação de uma sociedade de controle que busca utilizar as tecnologias para concentrar poder e conter a criatividade, expandindo e ampliando a apropriação privada sobre o que é comum”. Entre outras coisas, o livro aborda questões como a cultura digital, as potencialidades das redes na educação, confronto entre colaboração e competição, direitos autorais e propriedade intelectual em tempos de convergência midiática, tudo com o viés da defesa da socialização, das construções coletivas — aquilo que viria a ser a “militância das militâncias” nas redes, ou seja, torná-las livres, na perspectiva de Thaís Brito (em outra interessante obra sobre contracultura digital).

Um trecho da apresentação do livro dá o tom do posicionamento político e intelectual dos autores: “Ao debater os padrões contemporâneos de emancipação, o que pretendemos foi discutir o atual posicionamento das subjetividades, os riscos e exageros do controle do conhecimento e da informática de dominação, além de alertar que a ampliação do compartilhamento é simultaneamente combatida pela expansão da propriedade sobre a cultura e pela ideologia da neutralidade tecnológica”. Vale lembrar que essa mesma preocupação dos autores que assinam a coletânea “Revolução 2.0 e a crise do capitalismo global” (2012), organizada por Giuseppe Cocco e Sarita Albagli. Há, certamente, um povoamento da rede não no sentido da liberdade, mas no sentido de uma submissão às mesmas fontes de poder de períodos mais, digamos, analógicos. E essa é uma questão que perpassa o livro “Além das redes de colaboração”.

Os autores alertam que a proposta do livro foi trabalhar a contradição entre as possibilidades de criação e disseminação culturais inerentes às redes informacionais e as tentativas de manter a inventividade e a interatividade são o controle dos velhos modelos de negócios construídos no capitalismo industrial. O projeto do qual resultou o livro, lembram os autores, “visou jogar uma luz sobre essas batalhas biopolíticas para que pudéssemos decifrar as disputas sociotécnicas em torno da definição de códigos, padrões, protocolos, aparentemente inocentes, neutros, simplesmente pragmáticos (racionais)”. Em suma, a ideia foi “desnudar as novas interfaces de dominação e apontar os novos cenários e personagens dos ideais de liberdade e democratização social”.

Retornando aos dizeres de Sérgio Amadeu, em 2008 no seu blog, no livro “as tecnologias da informação e da comunicação foram avaliadas em suas dimensões mais importantes. As explicações nascidas da matriz do pensamento único, a qual procura esconder suas determinações histórico-sociais sob o discurso de uma racionalidade neutra, foram confrontadas com aquelas que pretendem dar transparência aos processos e politizar o debate sobre tais dimensões tecnológicas e sobre as históricas relações entre a ciência, o capital e o poder”.

A obra é apenas uma das contribuições sobre esse intrincado tema, que nos acomete cotidianamente, muito embora nem sempre o percebamos. Outras obras de semelhante importância complementam esse quadro fragmentado entre os limites e possibilidades da e na rede, como os citados antes nesse texto e os quais na medida do possível também iremos compartilhar.

Livro para download: Sobre a televisão

Baixe grátis o livro Sobre a televisão seguido de A influência do jornalismo e Os Jogos Olímpicos, de Pierre Bourdieu

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Neste pequeno livro, Bourdieu faz uma provocação: falar da TV na própria TV. Os textos reunidos no livro são fruto de suas aulas transmitidas em um programa de televisão educativa. Nessas aulas, o autor analisa como a televisão influencia diferentes campos do saber e como ela coloca em xeque o próprio conhecimento, a vida política e a democracia. O jornalismo televisivo e os debates políticos na televisão também merecem atenção especial nessa obra, em que Bourdieu critica o jogo dos bastidores, a saber, os jogos de poder e as consequências nefastas para a vida social.
Pierre Bourdieu (1930-2002) é um dos mais importantes pensadores sociais do século XX, cuja influência, chegada tardiamente no Brasil, é muito presente na educação, em especial na sociologia da educação; mas também nas ciências sociais e na antropologia. Na educação, em especial, suas pesquisas sobre o sistema educacional francês trouxeram grandes contribuições para as análises da função da escola e do currículo escolar nas sociedades contemporâneas, ao reproduzir as dinâmicas sociais que, no limite, visam a manutenção das estruturas de poder. Suas ideias permanecem atuais nos dias de hoje, sobretudo em países como o Brasil, em que o sistema escolar nacional está sob constante ataque no que se refere à ameaça do esvaziamento crítico da formação e de uma preparação voltada a formar trabalhadores para qualificações simples. A atualidade do pensamento de Bourdieu vale não apenas para a educação, mas para outros campos aos quais ele se dedicou pesquisar e analisar, como as artes, a religião, a universidade e, no caso específico desse livro, a mídia.

Publicado pela primeira vez no final da década de 1990, “Sobre a televisão” apresenta duras críticas, academicamente falando, relacionadas ao fazer televisivo. Bourdieu deixa claro que os programas de televisão nos quais gravou suas aulas — que vieram a se converter nos textos do livro — tiveram condições excepcionais, se comparados aos programas de televisão convencionais, das emissoras comerciais. Nesse caso, o programa de TV pode ser comparado como um poderoso instrumento de democracia direta, algo ausente da programação televisiva dos canais tradicionais.

Um dos pontos de partida que ajudam a entender a obra é a apropriação dos conceitos usados por Bourdieu em outros escritos, como os conceitos de poder simbólico, habitus, campo e capital cultural. Os trechos a seguir, que apresentam a obra, foram extraídos e adaptados da resenha escrita pela professora Sylvia Caiuby Novaes, do Departamento de Antropologia da USP, para uma edição de 1998 da Revista de Antropologia. Segundo ela, em “Sobre a televisão”, “foi também a partir da noção de campo que Bourdieu desenvolveu sua análise sobre a televisão e, particularmente, sobre o jornalismo televisivo. “Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior deste espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar este campo de forças.” (p:57). Como se estrutura o campo jornalístico e quais as conseqüências desta estruturação para o jornalismo que nos é oferecido pela TV?

A tese de Bourdieu é simples: o universo do jornalismo é um campo que está sob a pressão do campo econômico a partir de uma realidade a qual a TV cada vez mais se submete: o índice de audiência. É através dos índices de audiência que a lógica comercial se impõe às produções culturais. Até cerca de trinta anos atrás o sucesso comercial imediato era visto como suspeito – nas artes plásticas, na literatura, etc.; hoje o mercado aparece como instância legítima de consagração do artista – os bestsellers, as listas diárias nos jornais dos mais vendidos, etc., apenas refletem esta tendência. Na TV, como bem lembra Bourdieu, esta lógica é levada ao máximo, já que os índices de audiência podem ser medidos a cada quarto de hora, com a possibilidade inclusive de se verificar as variações por grandes categorias sociais.

Em íntima conexão com os índices de audiência estão os critérios de seleção daquilo que será mostrado na TV. A TV convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena as imagens e exagera a importância do fato, seu caráter dramático e trágico. Os acontecimentos são selecionados a partir do princípio do sensacional, do espetacular, da busca do “furo jornalístico”, que inunda a tela de enchentes, incêndios, acidentes, assassinatos. Ao submeter-se à pressão comercial a TV pode “ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso fizesse o que supostamente faz, isto é, informar; ou ainda mostrando o que é preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade” (p:25). A TV que se pretende um instrumento de registro torna-se, assim, um instrumento de criação de realidades e é, neste sentido, um campo de produção simbólica com muito pouca autonomia”.

Nesse contexto, algumas práticas recorrentes no universo da televisão e do jornalismo são práticas que convertem a televisão de potencial meio de comunicação e, consequentemente, instrumento democrático, em meio hegemônico de conformação ao estado das coisas, segundo os interesses do campo econômico. Essas práticas podem ser identificadas como os debates políticos “falseadamente verdadeiros ou verdadeiramente falsos”, como as estratégias de mostrar escondendo ou esconder mostrando; e como a circulação circular da informação, que ocupa toda a programação da grade com determinados conteúdos, enquanto outros, de relevância social, são minimizados. Embora Bourdieu tenha analisado efetivamente a televisão francesa, essas praticas podem ser transpostas facilmente para qualquer outro país. E, mais ainda, não apenas para o contexto midiático dos meios de comunicação convencionais, mas também para o tipo de conteúdo que largamente se consome nos dias de hoje nas redes sociais da internet, seja por meio de links estrategicamente patrocinados que saltam à tela sem que o usuário tenha procurado por ele, seja pela entrada dos grandes veículos de comunicação no espaço da internet, que inicialmente se apresentava como um espaço de contracultura, mas que cada vez mais é capturado pelas estruturas hegemônicas do poder.

 

Cultura digital: Repercussões da ubiquidade no cotidiano docente

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A incorporação de tecnologias digitais e móveis repercute de diferentes maneiras entre os trabalhadores. A erosão de fronteiras de tempos e espaços provocada pela cultura da mobilidade na cultura digital e pela condição ubíqua na qual se desenvolve o trabalho em alguns segmentos são as marcas do tempo presente quando se analisa o trabalho com o uso de tecnologias digitais. Atributos da ubiquidade, como simultaneidade e onipresença, ganham novos contornos, dadas as condições de trabalho, cada vez mais intensificado e extensificado, como é o trabalho docente contemporâneo.

Por Rafael Cunha*

A emergência da cultura digital repercute de diferentes maneiras e insere novos ingredientes no debate sobre o trabalho, especialmente nos segmentos dos mundos do trabalho em que o uso de tecnologias são cada vez mais exigidos. Parece claro, todavia, que essas mudanças não são uma exclusividade da cultura digital ou das tecnologias digitais. Nos estudos sobre trabalho, em especial os de abordagem psicológica sobre as condições ergonômicas, não são poucos os exemplos de como a inserção de diferentes técnicas ou tecnologias nos processos de trabalho interferem no cotidiano do trabalhador e na própria execução das tarefas. Ao menos desde a década de 1970, os estudos como os de Jacques Leplat e Xavier Cuny [1] demonstram as alterações decorrentes da inserção de tecnologias nas rotinas de trabalho e, em muitos casos, nas condições de saúde dos trabalhadores.

Mas é preciso voltar um pouco no tempo para compreender melhor a relação entre as tecnologias e o trabalho, principalmente com o advento da Modernidade e da racionalidade científica, pautada no desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Os movimentos das “grandes invenções” e das “grandes navegações” desde o fim do período medieval colocavam novos ingredientes na relação da humanidade com a natureza. Francis Bacon, por exemplo, na virada do século XVI para o século XVII, colocava no desenvolvimento da ciência e da tecnologia as condições para um futuro melhor, em que a racionalidade seria utilizada para a liberação das pessoas dos trabalhos pesados e proporcionaria aos seres humanos uma vida melhor.

Em sua obra de ficção inacabada, a New Atlantis, Bacon vislumbrava uma sociedade utópica, perfeita, em que os produtos da racionalidade científica eram compartilhados com toda a sociedade. A tecnologia serviria, portanto, para o desenvolvimento de sociedades mais avançadas, e não como mecanismo de exploração de homens por outros homens. É bem verdade que não foi isso o que se viu com o advento da Revolução Industrial e com a inserção de maquinarias pesadas nos processos produtivos, com o incremento da produção e da produtividade em menor tempo: embora o emprego de toda a maquinaria sinalizasse para a liberação do trabalho degradante, esse movimento foi acompanhado por uma condição miserável dos trabalhadores da época, com jornadas exaustivas e prolongadas de trabalho, controle de tempos, espaços e ritmos de produção.

Começava a ficar claro que, diferente do que Bacon e outros pensadores do início da Modernidade previam, não bastava o desenvolvimento da ciência e da tecnologia para liberar a humanidade das condições extenuantes de trabalho: o fator econômico era determinante. Parte dessa crítica é encontrada na tradição marxista na análise sobre o trabalho e sobre o desenvolvimento das forças produtivas: com novas tecnologias, o “trabalho vivo” (aquele realizado diretamente por pessoas) tenderia a diminuir se comparado com o “trabalho morto” (o trabalho realizado por máquinas). O utópico “reino da liberdade”, oriundo dessa tradição, grosseiramente falando coincidia com a liberação dos trabalhadores de jornadas exaustivas e prolongadas e, portanto, com mais tempo para o seu desenvolvimento omnilateral, com mais tempo para o desenvolvimento de todas as dimensões do espírito humano, sem ter seu tempo absorvido inteiramente pelo trabalho explorado para a geração de valor para apenas uma pequena parcela da população.

De fato, a automação, a robótica e a “digitalização” tornaram obsoletas algumas ocupações e melhoraram as condições de trabalho de muitos segmentos. Todavia, se compararmos as condições técnicas existentes atualmente e as condições precárias de trabalho (e, pior, o grande número de pessoas excluídas do mundo do trabalho) que persistem, fica evidente que não se pode buscar nas tecnologias as condições mais profícuas ou mais precárias de trabalho, mas sim no modo de produção capitalista e seu movimento incessante de aumento da produção e da geração de mais valor que, por meio das forças produtivas, consubstancia ritmos mais intensos de trabalho, controle de movimentos, tempos e espaços [2], cuja representação clássica é retratada, no cinema, por Charles Chaplin no clássico “Tempos Modernos” (1936). Esse fenômeno é redimensionado com a emergência e incorporação das tecnologias digitais nos processos produtivos, em que o seu uso se converte em pilares da globalização da economia por possibilitar o contorno de obstáculos espaço-temporais.

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Mobilidade e ubiquidade

A incorporação de tecnologias digitais e móveis no cotidiano incide, diretamente, no redimensionamento de tempos e espaços e nos sentidos de ausência e presença, espaço e lugar. O advento da cultura digital potencializa os lugares físicos tradicionais, que se tornam multidimensionais, inseparáveis do que Santaella [3] chama de hipermobilidade: a mobilidade física acrescida de aparatos tecnológicos que permitem uma segunda mobilidade no ciberespaço. Por sua vez, espaços multidimensionais e hipermobilidade estão na base do conceito de ubiquidade e levam a um controverso processo de presença-ausência, de público-privado. Na perspectiva de Santaella, a ubiquidade tornou-se possível pela emergência de um outro espaço que não o físico: o ciberespaço. Nessa ambiência, o ser humano adquire o “poder de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo […], onipresente”. Embora a autora reconheça os riscos das consequências socioculturais e psíquicas, trata-se, segundo ela, de uma “recém-adquirida condição do ser humano em ser ubíquo, […] que concede a ele o atributo da ubiquidade, algo que, antes, lhe parecia impossível”.

A condição ubíqua, dentre outros, em função da possibilidade de mover-se por diferentes espaços simultaneamente, propicia que independentemente do lugar físico em que se esteja, o indivíduo esteja sempre presente e sempre ao alcance, seja de outras pessoas, seja do próprio trabalho, via tecnologias digitais e móveis. Por sua vez, a condição ubíqua do indivíduo leva ao borramento de fronteiras entre público e privado, presença e ausência, como aparece nos escritos de Lucia Santaella, provavelmente a maior especialista em ubiquidade na cultura digital da literatura brasileira. O fenômeno da ubiquidade, típico da cultura digital, é uma questão interdisciplinar, pois envolve duas dimensões que afetam todas as atividades humanas: tempo e espaço. Repercute, por conseguinte, de diferentes maneiras no cotidiano em geral, no trabalho e na educação, mais especificamente.

Foi a partir deste panorama e considerando a preponderância do binômio espaço-tempo nos estudos clássicos sobre as condições de trabalho intensificado que um estudo analisou quais as repercussões da ubiquidade para o cotidiano de vida e trabalho de professores, a partir dos significados e sentidos que atribuem à incorporação e usos de tecnologias nos contextos de trabalho [4]. A pesquisa envolveu professores de cursos de pós-graduação stricto sensu de todas as regiões brasileiras.

Os atributos da ubiquidade na cultura digital mantêm relações tanto no que se refere ao sistema de produção vigente quanto à lógica de produzir e trabalhar incorporada ao trabalho docente, que desencadeia as práticas do produtivismo, em um “capitalismo acadêmico”. Em paralelo, os atributos da ubiquidade que permitem uma condição de onipresença do indivíduo, capaz de mover-se simultaneamente por vários espaços [5], traduz-se como ampliação de espaços e reconfiguração dos sentidos de lugar, ausência e presença: conectados, os indivíduos passam a ser multitarefas e estão ‘sempre presentes’, sempre ao alcance, no âmbito de uma erosão de fronteiras propiciada pela cultura digital.

Alterações no trabalho com o uso de tecnologias, em função do redimensionamento de tempos e espaços

Os atributos da ubiquidade na cultura digital repercutem de maneira difusa e diversa no trabalho docente. Há um consenso (cerca de 95% dos pesquisados) entre os professores de que o aspecto que mais se alterou em seu trabalho com o uso das tecnologias foi o redimensionamento do espaço e do tempo. Para 91% dos professores, houve uma dilatação dos espaços de trabalho, mas há controvérsias entre eles sobre as vantagens e/ou desvantagens dessa dilatação com o uso das tecnologias no trabalho docente: em alguns depoimentos, fica evidente que a mobilidade facilita o acesso a materiais de pesquisa e trabalho, dispensa, em alguns casos, deslocamentos físicos, e facilita o contato com orientandos, que passam a estar ao alcance, independentemente da distância física. Por outro lado, inúmeros depoimentos sobre as alterações no trabalho docente com a incorporação de tecnologias digitais apontam para repercussões desvantajosas para a vida e trabalho do professor.

Em função das condições de trabalho, a maioria dos professores acaba extrapolando a carga horária contratual e sempre ou frequentemente levam trabalho para casa. Mediado por tecnologias digitais e móveis, o trabalho invade espaços e tempos de lazer para 81% dos pesquisados. Além disso, 69% dos professores afirma que os espaços sociais de uso das tecnologias (por exemplo, uso de redes sociais para fins de lazer) convertem-se em espaços de trabalho. Mais do que isso: 73% dos professores costuma dedicar seu tempo de descanso e lazer para acessar e-mails e resolver demandas de trabalho, valendo-se da possibilidade tecnológica de estar ‘próximo’ do seu trabalho, via tecnologias digitais.

Entre os pesquisados, fica evidente que ‘estar sempre presente e ao alcance’, em função do fenômeno da ubiquidade e das condições de trabalho na pós-graduação, significa estar sempre disponível também para o trabalho. Nesta ambiência, para a maioria dos pesquisados, uma das repercussões do caráter ubíquo do trabalho docente na pós-graduação é a de que todos os tempos e espaços convertem-se em espaços e tempos de trabalho, seja em função do atropelamento informacional, seja pelas facilidades dos gestores ou órgãos reguladores demandarem tarefas: basta uma mensagem via dispositivos digitais e móveis para acionar os professores, a qualquer momento. Em sentido semelhante, de acordo com os relatos dos pesquisados, as facilidades comunicacionais instauradas pela cultura digital proporcionam a instauração de uma cultura de total disponibilidade do orientador aos alunos e/ou orientandos. Nesse sentido, a ubiquidade do trabalho faz com que alguns professores considerem que não há mais fronteiras entre tempos de lazer e de trabalho: o professor de pós-graduação tornou-se “atemporal” (sic).

Simultaneidade: ser multitarefa e onipresente com as tecnologias

Outra característica da ubiquidade, típica da cultura digital, é a potencialização do fenômeno da simultaneidade. Com o redimensionamento dos deslocamentos por espaços on-line e off-line é possível ao indivíduo desempenhar atividades diversas ao mesmo tempo: um dos aspectos mais destacados pelos participantes da pesquisa é a simultaneidade da realização de tarefas com o uso de tecnologias, prática habitual para 84% dos pesquisados. Mas, se por um lado, a simultaneidade de realização de tarefas pode levar a uma economia de tempo em muitos processos, para além dessa vantagem aparente, entre os depoimentos dos docentes há inúmeras manifestações sobre as repercussões dessa condição de ser multitarefa.

A capacidade de ser multitarefa é um dos atributos elogiados e desejáveis que emergem dos discursos no âmbito da cultura digital. É o que distingue, inclusive, os chamados “nativos digitais” [6]. Ser multitarefa, no entanto, também está relacionado a ser mais produtivo e eficiente realizando um certo número de tarefas ao mesmo tempo, por um determinado período. Por sua vez, ser multitarefa não traz nenhuma vantagem para o indivíduo, uma vez que modifica a economia da atenção, que se fragmenta e, no final, é destruída, como demonstra o filósofo alemão de origem coreana Byung-Chul Han em sua obra Sociedade co cansaço (2015). Além disso, estar sempre presente ou ser constantemente interrompido em suas atividades por meio de dispositivos digitais e móveis repercute na atenção parcial contínua, processo de “prestar atenção parcial continuamente, por causa de um desejo […] de conectar e ser conectado, de não perder nada, sempre em alto estado de alerta” (SANTAELLA, 2007, p. 239), que, como consequência, pode desencadear um paradoxal sentimento de vazio e a perda da capacidade de diferenciar situações que exijam alta e baixa densidade de atenção.

Han [7], referindo-se à falta de atenção profunda que o modo de vida contemporâneo fomenta, enfatiza que os desempenhos culturais da humanidade pressupõem uma ambiência em que seja possível uma atenção profunda. No entanto, a ubiquidade desloca a atenção profunda para uma atenção dispersa, caracterizada pela rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos – algo que William Powers,  sem a pretensão de ser científico, já havia anunciado em seu livro O BlackBerry de Hamlet: ultraconectadas, as pessoas estão fazendo várias coisas ao mesmo tempo, mas sem profundidade; sem tempo para a contemplação e reflexão que só o afastamento da ágora permite [8]. Nesse sentido, em conjunto com as condições de trabalho na pós-graduação, a ubiquidade instaura um obstáculo ao próprio trabalho intelectual dos professores, de modo paradoxal: ao mesmo tempo em que expande as possibilidades de trânsito em espaços distintos e simultaneamente – o que contribui, em termos de tempo, para o aumento da produtividade – desencadeia os controversos processos multitarefa e de atenção parcial contínua. Estes processos minam o estado de atenção profunda e contemplativa e de ócio, condição para os processos criativos que fazem parte da atividade intelectual e que repercutem na própria questão da produtividade.

Para a maioria dos pesquisados, a possibilidade de ser multitarefa não representa um aspecto necessariamente positivo da ubiquidade, pois prejudica a realização de outras atividades (para 80,1% dos pesquisados) e os momentos de lazer. De modo também expressivo, 77,1% dos professores avaliam que o uso das tecnologias digitais na pós-graduação favorece interrupções nos processos de trabalho, como, por exemplo, pausar a atividade para checar e-mails, acessar redes sociais e links não necessariamente ligados ao trabalho do momento, entre outros aspectos. Assim como ocorre com a distração durante as aulas, esse não é um fenômeno novo. O que as práticas sob a cultura digital instauraram foi o seu redimensionamento e ressignificação por meio da “magia das telas” a que se refere William Powers, em que a hipertextualidade e a hipermidialidade (ou seja, zapear de um link a outro indefinidamente) potencializam uma maior distração em períodos de tempo maior. Acrescenta-se a esse quadro o fato de que as tecnologias digitais contemporâneas, na emergência da web 3.0, adquirem cada vez mais características de invisibilidade, à medida que são plenamente incorporadas no cotidiano – o que pode resultar que nem as tecnologias, nem os seus usos, sejam facilmente percebidos pelos usuários, intensificando os momentos de interrupção de uma atividade em detrimento de outras.

Por fim, a potencialidade de estar presente em diferentes espaços ao mesmo tempo – o caráter de onipresença, que aparece como condição recém adquirida pela humanidade em função da ubiquidade – não representa, para a maioria dos professores pesquisados, vantagens ao trabalho docente na pós-graduação: para 74% deles, estar disponível via tecnologias digitais e móveis prejudica os momentos de lazer, visto que a qualquer momento podem surgir demandas de trabalho. Por sua vez, esse panorama parece ser uma realidade emergente no contexto do trabalho docente da pós-graduação, visto que 70% dos pesquisados ‘não desliga’ do trabalho em função dos usos das tecnologias, mesmo em momentos de lazer.

O futuro do trabalho: o trabalho ubíquo

Os atributos da ubiquidade, geralmente vistos sob aspectos positivos na literatura, como nas obras de Lucia Santaella e Mark Prensky, ganham novos contornos sob as condições do trabalho docente. Se a condição ubíqua permite mover-se por diferentes espaços simultaneamente, o lugar converte-se em transitório e o indivíduo passa a estar sempre presente, mesmo que esteja ausente. Mas, na lógica das condições de trabalho, a onipresença promovida pela comunicação ubíqua não tem nada de divina: ao contrário, inscreve-se nas condições humanas no limiar das características precárias de trabalho docente, pois significa que o indivíduo está onipresente para o trabalho, assim como o trabalho está onipresente para o indivíduo [lembramos a frase que Marx teceu, de que o homem que não dispõe de tempo livre e cujo tempo está todo absorvido pelo trabalho é menos que uma besta de carga].

Paradoxal e eventualmente, essa onipresença garante uma maior produtividade – o que pode ser visto como vantajoso em alguns casos. Mas a ampliação de tempos de trabalho e sua intensificação são as marcas que mais se evidenciam sob este aspecto, de acordo com os depoimentos dos professores da pesquisa, à medida que a aparente engenhosidade de ser multitarefa e mais produtivo se metamorfoseia em expropriação em massa de tempo e práxis [9] e à medida que “o excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração […] mais eficiente do que uma exploração pelo outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade” (HAN, 2015, p. 30).

Sem perder de vista às incontestáveis vantagens que os usos das tecnologias trazem para o tipo de trabalho realizado no âmbito da educação em suas diferentes modalidades e seus diferentes níveis, as repercussões da ubiquidade — não por elas mesmas, mas pela lógica de produtividade instaurada no trabalho docente — apontam para ambivalências e contradições.

No tocante aos significados e sentidos atribuídos pelos professores às alterações no seu trabalho docente com o uso de tecnologias digitais e móveis em função de tempos e espaços de trabalho, podemos evidenciar as vantagens de usos das tecnologias para a realização de algumas atividades que dispensam deslocamentos físicos e encontros presenciais. Mas, de modo mais contundente, o modo como os professores percebem essas alterações vão no sentido de que houve uma intensificação do tempo e uma ampliação de espaços de trabalho que, conjugadas, invadem tempos e locais de descanso, lazer, finais de semana, férias ou mesmo períodos de convalescência.

Em sentido semelhante, as relações entre as condições de trabalho e o redimensionamento de tempos e espaços de trabalho significa, para a maioria dos professores, diminuição do tempo livre e espaços, on-line e off-line, convertidos em espaços de trabalho. Por sua vez, as características do trabalho docente em função da ubiquidade que permeia o processo e em função do borramento de fronteiras (entre lugares e tempos, ausência e presença, público e privado) é representado de diferentes maneiras nos depoimentos dos professores. Estar sempre presente e ao alcance significa estar sempre disponível para demandas de trabalho. A dilatação de espaços significa extensificação de espaços de trabalho. Simultaneidade resulta na intensificação do trabalho, incluindo a invasão de tempos de lazer. Em alguns casos, desligar do trabalho significa desligar das tecnologias. A ubiquidade também resulta na condição de ser multitarefa, indicativo de mal-estar. E a onipresença propiciada no âmbito da ubiquidade pode significar “o fim do descanso” (sic), no limite da degradação do trabalhador.

A despeito das inúmeras potencialidades e indagações que a vida ubíqua suscita, não podemos perder de vista que esse modo de vida on-line também é alcançado pelas relações de produção do modo capitalista, que coloniza o tempo livre com obrigações em rede e que amplia os espaços de produção, ao passo que estende os tempos de produção.

Os depoimentos da pesquisa permitem evidenciar que o trabalho se torna ubíquo à medida que exige deslocamentos do off-line para o on-line de modo incessante. Nesse sentido, o próprio professor torna-se ubíquo, pela característica da sua atividade e também em função de estar imbricado em uma cultura cada vez mais digitalizada. Ser ubíquo e estar sempre presente em diferentes espaços também significa, no modo de produção vigente, estar conectado para produzir ou consumir durante todo o tempo.

A expressão “trabalho full time” com o uso de tecnologias digitais, que encontramos na pesquisa, pode não ser (ainda) uma generalidade, mas não podemos negar que as tecnologias mais importantes criadas nos últimos dois séculos foram aquelas para administração e controle dos trabalhadores 24 horas por dia, sete dias por semana, conforme Jonh Crary situa: a tessitura 24/7 “anuncia um tempo sem tempo, […] sem demarcação material ou identificável […]”. Implacavelmente redutor, celebra a alucinação da presença, de uma permanência inalterável, composta de alterações incessantes e automáticas. “[…] o caráter inexorável do 24/7 repousa em sua temporalidade impossível”. O trabalho ubíquo é apenas uma dimensão desse processo. E pode significar o futuro do trabalho.


Notas
[1] Ver, em especial, os trabalhos de Leplat e Cuny. LEPLAT, Jacques; CUNY, Xavier. Introdução à Psicologia do Trabalho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
[2] ENGUITA, M. F. Tecnologia e sociedade: a ideologia da racionalidade técnica, a organização do trabalho e a educação. In: SILVA, T. T. (Org.). Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. p. 230-253.
[3] SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.
[4] O estudo foi concluído em 2016 como parte de minha pesquisa de doutorado sobre uso de tecnologias no trabalho em educação.
[5] SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
[6] Esse tema é recorrente nas obras de Mark Prensky, que formulou os conceitos de “nativos digitais” e “imigrantes digitais”, e que também ‘desenhou’ as características comuns dos nativos digitais, dentre as quais, as vantagens de ser multitarefa e executar mais rapidamente algumas tarefas. Essas temáticas aparecem nas seguintes obras de Prensky: Digital natives, digital immigrants. MCB University Press. Vol. 9, n. 5, 2001. “Não me atrapalhe, mãe! – eu estou aprendendo”. São Paulo: Phorte Editora, 2010.
[7] HAN, B. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
[8] POWERS, W. O BlackBerry de Hamlet. São Paulo: Alaúde, 2012.
[9] CRARY, J. 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
*Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador na área de educação, cultura digital, trabalho e tecnologias.