Arquivo mensal: outubro 2015

Conectividade e neoliberalismo: estamos doentes

O jornal O Estado de São Paulo publicou uma reportagem com o título: Excesso de informações pode prejudicar memória e tomada de decisões. Como o cérebro tem limites para a tomada de decisões, com a sobrecarga de informações no cérebro, a relevância dos dados na memória podem paralisar a pessoa. Em síntese, o que os cientistas estão descobrindo (ou só agora admitindo) é que o cérebro humano não é igual ao sistema de informação de uma máquina.

A reportagem chama a atenção para o estilo de vida contemporâneo, em que estamos “sempre conectados”, mas que isso pode ser prejudicial de diferentes formas. O estímulo às informações, ao invés de tornar o cérebro mais saudável e com um rol maior de dados para as pessoas utilizarem pode, ao contrário, trazer uma série de danos não apenas ao cérebro, mas para a saúde em geral — desencadeando as doenças tão comuns do nosso tempo, como stress, depressão, ansiedade.

A reportagem, por óbvio, pouco enfatiza o papel do modo de produção vigente como preponderante para o estado de doença a que nossa sociedade vem se submetendo, desde que o modo neoliberal é neoliberal. Com os construtos, primeiramente ideológicos, e depois formativos, a ideia de sociedade da informação foi sendo naturalizada no seio da sociedade capitalista para dar origem à ideia de sociedade do conhecimento, na qual o uso de informações e suas tecnologias se torna fundamental. Na esteira dessas noções, assistimos a emergência da cultura digital e dos nativos digitais, esses nascidos de pouca investigação empírica e muita observação cotidiana feita por Marc Prensky no já distante ano de 2001. Multitarefas, solucionadores de problemas, que aprendem a tomar decisões e a agir no mundo por meio de jogos de computadores (quanto mais intenso for o uso de jogos, melhor, para esse professor universitário que casualmente tem uma empresa de games), como é possível atestar no seu um pouco mais recente livro “Não me atrapalhe, mãe – Estou aprendendo” (2010), uma espécie de autoajuda para os pais e professores tolerarem e incentivarem suas crianças a, oras, jogar videogame e usar as tecnologias digitais!

Sociedade da Informação, Sociedade do Conhecimento, Cultura Digital, nativos digitais estão em um contexto que, obedecendo ao modo de viver e produzir no âmbito contemporâneo, converte nossa sociedade a uma “sociedade do desempenho”, que leva o ser humano ao limite de uma sociedade do cansaço e pode, com efeito, levar a uma sociedade da barbárie.

O conceito de sociedade da informação surgiu na década de 1970 no mundo empresarial. Na lógica do sistema de produção, a informação se converte em insumos e ela mesma em mercadoria — uma mercadoria extremamente importante para o século XXI. O desenvolvimento constante das redes tecnológicas e dos dispositivos de armazenamento de dados (lembre-se que há 15 anos o principal dispositivo de armazenamento de dados fora do computador era o disquete, com capacidade de míseros 3,44 MB, equivalente a uma música em MP3), primeiramente físicos (unidade externa de CD-ROM e depois HD externo e pen drives com grande capacidade de armazenamento) e, atualmente, on-line (o armazenamento “em nuvem”) é um traço significativo para refletirmos o quanto o armazenamento de dados/informação é relevante para a economia, no contexto da sociedade da informação.

O paradigma desse modelo de sociedade foi amplificado com a difusão da informática na virada dos anos 2000. A sociedade em rede, postulada por Manuel Castells no final da década de 90, foi ao mesmo tempo reflexo e catalisador de uma sociedade que se pretendia universal, homogênea, sob os auspícios da lógica neoliberal. Nos primeiros anos do século, no âmbito da educação e da cultura, a UNESCO tratou de renovar a centralidade das informações para o modelo de sociedade concebido por Castells, realizando várias conferências que, no final, resultou no Relatório Mundial Rumo às Sociedades do Conhecimento. Pela lógica da UNESCO, a informação se convertia em conhecimento — quase que ‘naturalmente’ — e, portanto, não deveria ficar de fora dos projetos educacionais dos países do bloco capitalista. A crescente incorporação das tecnologias digitais e móveis no mundo do trabalho e nos diversos segmentos da vida social, sob os auspícios da lógica neoliberal de viver e produzir, levou à aceleração do tempo, dos ritmos de trabalho e de acesso e uso da web e de sistemas informatizados. Conceitos como mobilidade e ubiquidade entram em cena para explicar o alcance das tecnologias digitais e móveis e nos deslocamentos espaço-tempo, dos quais qualquer pessoa com acesso à internet não consegue escapar imune.

Estar sempre conectado e ao alcance se tornou, em um primeiro momento, sinal de estar sintonizado com o tempo presente e suas características; algo cool, um novo estilo de vida (nerds e geeks nunca foram tão valorizados). Não demorou muito para os efeitos nocivos desse uso intenso das tecnologias ganhar o campo teórico e empírico nas ciências sociais e humanas.

Por detrás do aparente progresso que a sociedade da informação e do conhecimento representam se esconde os traços do inevitável: que essa também é a “sociedade do cansaço e do desempenho”. O excesso de informação já vinha sendo problematizado desde o início da década passada, de diversos aspectos. Tanto no que se refere à ‘utilidade’ de tanta informação, até sua reprodução exaustiva (o que é característico das práticas de compartilhamento nas redes sociais e da cultura “do ctrl c ctrl v” que se espalha por diversos blogs especializados em colocar a sua marca e o seu design em uma mesma publicação, da qual se perde e se desloca a noção de autoria em menos de 24 horas). A quantidade de informações às quais as pessoas são submetidas diariamente pelo uso intenso das tecnologias digitais e, mais especificamente, pela intensificação do tempo provoca uma série de sintomas patológicos oriundos do que o filósofo Byung-Chul Han chama de “excesso de positividade”: a violência da positividade que resulta da superprodução, superdesempenho ou supercomunicação”.

No recém lançado livro “Sociedade do cansaço”, Han afirma que “a violência da positividade não pressupõe nenhuma inimizade. Desenvolve-se precisamente numa sociedade permissiva e pacificada [na qual não existe impossível]”. Por isso essa violência é mais invisível — e nociva — do que outras. As doenças contemporâneas, como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limítrofe ou síndrome de Burnout são, para o autor, patologias sistêmicas causadas pelo excesso e pelo ritmo de vida deste século, da qual tanto os ritmos de trabalho quanto à superexposição as tecnologias digitais e móveis estão conduzindo a humanidade a uma sociedade do cansaço. A técnica temporal de ser multitarefa — a característica dos chamados “nativos digitais”, tão exaltada por partidários dessa corrente de pensamento — não traz, segundo Han, nenhum progresso no processo civilizatório: ao contrário, trata-se de um retrocesso, uma vez que modifica a economia da atenção, que se fragmenta e, no final, é destruída — algo que William Powers, sem a pretensão de ser científico, já havia anunciado em seu “O BlackBerry de Hamlet”: ultraconectadas, as pessoas estão fazendo várias coisas ao mesmo tempo, sem nenhuma profundidade; sem tempo para a contemplação e reflexão que só o afastamento da ‘ágora’ permite.

Han continua: “Não apenas a multitarefa, mas também as atividades como jogos de computador [outro item apreciado pelos admiradores dos nativos digitais] geram uma atenção ampla, mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem”. Na vida selvagem, o animal é obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades (comer e não ser devorado, por exemplo), por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo, nem no se alimentar, nem no copular. “Os desempenhos culturais culturais da humanidade […] devem-se a uma atenção contemplativa. A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda”, algo que não está sendo permitido a grandes parcelas da população, seja pelo ritmo de vida e intensidade do trabalho invadindo tempos e espaços de não-trabalho via dispositivos móveis, seja pelo excesso de atividades por meio das tecnologias digitais.

Além da ansiedade, que se manifesta em atitudes como ficar olhando toda hora o celular, ou checando se há alguma novidade no Facebook, esse tipo de comportamento multitarefa que afasta a atenção profunda, também leva ao tédio: a atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. Mais uma vez aqui a noção de mobilidade e ubiquidade fazem todo o sentido, pois pressupõe práticas bastante observáveis no cotidiano, como estar almoçando com alguém de olho no celular, conversando no WhatsApp e zapeando no Facebook ao mesmo tempo. A hiperatenção (ou atenção dispersa) não tolera o tédio, que não deixa de ser importante para um processo criativo.

Os focos de resistência a esse movimento são ainda muito tímidos. Mesmo o sono (o ponto alto do descanso físico e da reorganização mental) é acossado pela atenção, que se manifesta na forma de insônia. Movimentos como o ‘slow food’ ou o “nadismo” tentam fazer frente ao ritmo alucinante da vida contemporânea. Mas falta, pela lógica animalesca do modo neoliberal de viver e produzir, espaço e tempo não apenas para a contemplação, mas para o recolhimento, sem o qual o olhar perambula inquieto de um lado a outro e não traz nada a se manifestar. Nossa sociedade, pela intensidade do trabalho e pelo excesso de conectividade, está ficando doente.

Han resgata o pensamento de Nietzche para lembrar que “a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo”. Mais do que nossa sociedade estar cansada e doente, “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie”.

Fontes:
Byung-Chul Han – Sociedade do Cansaço (Vozes, 2015).
Jonathan Crary – 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono (Crary, 2014).
William Powers – O BlackBerry de Hamlet (Alaúde, 2012).

Excesso de informações pode prejudicar memória e tomada de decisões. O Estado de S. Paulo, 13 de outubro de 2015.

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Imagem: detalhe da capa do livro Infoproletários (Ricardo Antunes e Ruy Braga).