Arquivo mensal: março 2019

Representações das questões étnico-raciais em enredos de Carnaval

Aprendendo com 15 sambas-enredo famosos do Carnaval do Rio de Janeiro temáticas da cultura negra e questões sócio-raciais

Nota: esse post foi originalmente publicado em fevereiro de 2017 e
atualizado em 2019.
pieta negra

Rio de Janeiro, 2018: desfile do Salgueiro homenageia as mulheres negras. Na foto, o carro Pietà Negra, uma referência à Carolina Maria de Jesus, catadora de lixo que ficou internacionalmente reconhecida pelo livro “Quarto de Despejo”, em que conta a miséria da favela

Embora frequentemente confundido com uma festa originariamente negra, o Carnaval brasileiro apresenta características distintas de região para região e quase nunca as questões próprias do universo étnico-racial negro são temáticas principais das escolas de samba. As primeiras manifestações populares do carnaval brasileiro se originaram no entrudo, festa de rua de origem portuguesa, da qual os negros escravizados não podiam participar. Foi com as festas religiosas de rua, nas quais senhoras negras, vestidas de branco, entoavam cânticos, que se iniciou a participação de negros no carnaval de rua. Todavia, foi só na virada para o século XX, com a criação dos blocos dos subúrbios, que as populações negras se incorporaram em definitivo nas festas do carnaval.

Os blocos de carnaval deram origem às primeiras escolas de samba no Rio de Janeiro, na década de 1920. Por mais de três décadas, os enredos dessas escolas contavam apenas a história oficial do Brasil — sobretudo a partir do Estado Novo, no qual o governo Getúlio Vargas incentivava, financeiramente, as agremiações que exaltavam os elementos da história nacional oficial. Essa situação passa a mudar no final da década de 1950. Edson Farias, no livro O desfile e a cidade: o carnaval-espetáculo carioca, situa como marco dessa virada o ano de 1960, quando o Grupo Salgueiro inclui a chamada “temática negra” no Carnaval, com o enredo “Palmares”. Segundo o autor, “o aspecto temático dos enredos torna-se o ponto de partida; em lugar das celebrações dos vultos da história brasileira convencional, excitam o “povo” a narrar seus próprios heróis e episódios encobertos. Ou seja, a proposta é incentivar a cultura popular a expressar toda épica dos subalternos no país”.

A partir daí, novas temáticas foram incorporadas pelas escolas de samba, incluindo personagens e episódios da história africana e afro-brasileira.

Contudo, expressões características das culturas e religiões afro-brasileiras incluídas nas letras nem sempre tornam as temáticas dos sambas-enredo temáticas da cultura negra, ou das questões sociais da população negra. Em 1991, por exemplo, a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, campeã do carnaval carioca, cantou “Aieieu Mamãe Oxum / Yemanjá Mamãe Sereia / Salve as águas de Oxalá / Uma estrela me clareia”, mas a sua temática era a água. Ou seja, embora o trecho se relacione aos orixás ligados à água, o tema não era propriamente elementos da cultura afro-brasileira. Assim, desfaz-se a impressão de que os temas de enredo das escolas de samba sejam, frequentemente, ligados à cultura negra africana e afro-brasileira.

Uma pesquisa de Andréa Pessanha publicada na revista Urutágua, em 2006, mostrou que, entre 183 sambas-enredo analisados, apenas 25 centravam as temáticas em “temáticas negras”, sejam elas de eventos, personalidades e questões próprias da realidade social das populações negras. Todavia, muitas temáticas eram secundárias (por exemplo, a homenagens a personalidades negras como Grande Otelo e Dorival Caymmi, portanto, não ligadas necessariamente a uma “temática negra”). Ainda, dos 183 sambas-enredo analisados, 92 não faziam qualquer referência a essas temáticas, o que mostra o quanto o senso comum pode se confundir quando se relaciona as variáveis “samba-enredo” e “temáticas negras”.

A seguir, listamos 15 sambas-enredo do carnaval carioca, desde 1960, cujo cerne das temáticas eram, efetivamente, questões sociais e raciais da cultura e história africana e afro-brasileira. Com suas diferentes maneiras de ver tais questões, muitas vezes tributária de criatividade do carnavalesco e de extensa pesquisa histórica, esses sambas mostram que o carnaval pode ensinar, com fantasia e batucada, tão bem quanto o saber que circula nas academias.

 

#01 1960: Acadêmicos do Salgueiro – Quilombo dos Palmares

Considerado um tema revolucionário para a época, o samba de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho “contava com toda a poesia e cadência melódica a luta de Palmares” [1]. Com componentes vestidos de escravos, pela primeira vez o negro viria a ser o protagonista de sua própria história. O Quilombo dos Palmares desceu às ruas. E a história dos enredos de carnaval estariam modificados para sempre.

 

#02 1968: Unidos de Lucas – Sublime Pergaminho

O samba escrito por Zeca Melodia, Nilton Russo e Carlinhos Madrugada trouxe ao carnaval uma visão romantizada da Lei Áurea, o “sublime pergaminho”. O samba, que já foi tema de questão do ENEM, embora não encontre respaldo em estudos históricos recentes, trouxe uma síntese da escravidão do país, do aprisionamento de negros africanos em navios negreiros até as leis abolicionistas dos anos de 1870 e 1880, que culminaria com a abolição da escravatura. Apesar de romantizar o episódio do fim da escravidão brasileira, o samba ficou marcado por trazer ao Carnaval um tema tabu para a época. Trinta anos depois, em 1988, a Estação Primeira de Mangueira retomaria a temática do fim da escravidão no Brasil com uma crítica mais contundente ao fim da escravidão. E, trinta anos mais tarde, em 2018, a Paraíso do Tuiuti seria alçada de candidata ao rebaixamento ao vice-campeonato do carnaval carioca com outra crítica às condições em que os negros libertos do regime escravocrata foram lançados no “cativeiro social”.

 

#03 1971: Acadêmicos do Salgueiro – Festa para um rei negro

O samba de Zuzuca ficou eternizado como “pega no ganzê” (cantado no refrão) e mudou o jeito de fazer samba-enredo: a partir dali, as escolas passaram a ter uma maior preocupação com os refrões dos sambas-enredo. O enredo se reportava a um episódio desconhecido da história brasileira, a visita do Rei do Congo ao Brasil no século XVII para solicitar a Maurício de Nassau sua intervenção para a paz entre os chefes de tribos africanas, cujos ânimos estavam acirradas em função de disputas comerciais europeias. O samba exaltava o rei negro e todas as festas e honrarias organizadas em sua homenagem, durante sua estadia em Recife.

 

#04 1972: Portela – Ilu Ayê

O samba Ilu Ayê (Terra da Vida), composto por Cabana e Norival Reis, prestava uma homenagem ao Negro na Civilização Brasileira, sua coragem, bravura, alegria e arte. Sem se ater a um personagem ou evento específico, o enredo teve como objetivo resgatar em forma de metanarrativa a importância e a influência do negro na constituição do povo e da cultura brasileira.

 

#05 1976: Mocidade – Mãe Menininha do Gantois

O samba de Djalma Crill e Tôco é considerado um dos mais belos sambas-enredo do carnaval de todos os tempos. No enredo, a homenagem à Maria Escolástica da Conceição Nazaré (1894-1986), conhecida como Mãe Menininha do Gantois, traz por extensão uma homenagem à religiosidade afro-brasileira e apresenta algumas das principais divindades africanas enraizadas na memória e história da fé nos terreiros do Brasil.

 

#06 1978: Beija-Flor – A criação do mundo na tradição Nagô

Com enredo do mítico carnavalesco Joãosinho Trinta, o samba de Neguinho da Beija-Flor, Gilson Dr. e Mazinho conta, como o título sugere, a criação do mundo a partir da narrativa nagô. Olorum, senhor do infinito, com sua respiração transforma o ar em água, lama e pedra, mistura avermelhada que gera Exu, o primogênito, que ajuda a criar, com outras entidades, o mundo, a vida e o amor. Trata-se de um descolamento das visões hegemônicas (centradas em elementos da cultura ocidental de origem helenística) sobre a criação do mundo e coloca a cosmologia africana nagô no mesmo patamar de outras visões de mundo. O enredo inspirou o filme O Samba da criação do mundo, drama brasileiro de 1979.

 

#07 1979: Acadêmicos do Cubango – Afoxé

A Acadêmicos do Cubango é uma das mais tradicionais agremiações de carnaval da Grande Rio, da cidade de Niterói, onde sagrou-se campeã em 1979 com um dos sambas antológicos do carnaval carioca: Afoxé, composto por Heraldo Faria e João Belém, reverencia os festejos lúdico-religiosos originários de Lagos, antiga capital da Nigéria. Essa manifestação foi popularizada no Brasil a partir de finais do século XIX, expandida para outras regiões tendo como referência a cidade de Salvador. “Os afoxés representam um dos traços de resistência das camadas populares da sociedade brasileira que, através da lapidação espontânea do caldo de cultura, preservam e a todos brindam com parte do vastíssimo legado gestado no continente também chamado de ‘Berço da Humanidade’” [2].

 

#08 1984: Unidos da Ponte – Oferendas

Uma festa religiosa, das religiões de matriz africana. O samba Oferendas, de autoria de Jorginho, levou ao carnaval a temática das oferendas entregues aos orixás, em uma homenagem (e uma aula cultural) à religiosidade brasileira que é originária das tradições africanas. A letra é carregada de elementos dessas religiões, citando os orixás e as respectivas oferendas entregues pelos devotos.

 

#09 1988: Unidos de Vila Isabel – Kizomba, festa da raça

Quando você estiver assistindo a uma transmissão de desfile de escola de samba e ficar confuso(a) se algum comentarista falar que a escola trouxe um samba forte para a avenida, tome como exemplo esse samba. Considerado um dos mais belos e mais poderosos sambas enredo de todos os tempos, Kizomba, festa da raça, de autoria de Rodolpho, Jonas e Luís Carlos da Vila, entrou para a história do carnaval carioca e, é claro, da escola Unidos de Vila Isabel, que chegou ao seu primeiro título naquele ano, surpreendendo o público e desbancando as escolas favoritas. “Marcada por um ritmo forte e cadenciado, bem próximo da batida dos atabaques de terreiro, a música traz uma poesia igualmente intensa e transgressora, posto que busca desconstruir um dos mais caros mitos da nossa história oficial, aquele que atribui à generosidade da princesa Isabel todo o crédito pelo fim da escravidão no Brasil” [3]. O enredo traz fortes referências à resistência dos escravizados e à abolição da escravatura no país; e atualiza a questão das relações étnico-raciais em um momento histórico em que todo o Ocidente se voltava para o regime de segregação racial na África do Sul (o apartheid), mostrando que a luta dos povos negros por igualdade ainda estava longe de ter fim: Vem a Lua de Luanda / Para iluminar a rua / Nossa sede é nossa sede / de que o “apartheid” se destrua. É um dos sambas enredo mais regravados por outros artistas.

 

#10 1988: Estação Primeira de Mangueira – Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão

No ano em que o país celebrava o centenário da abolição da escravatura, a Mangueira ergueu a voz contra o ideário predominantemente romantizado da promulgação da Lei Áurea e questionou se, de fato, a escravidão havia chegado ao fim. Composto por Alvinho, Hélio Turco e Jurandir e interpretado pela voz inconfundível de Jamelão, o samba entrou para a galeria dos maiores sambas já produzidos no país. O mote do enredo, no cerne, são as relações étnico-raciais, uma luta do bem contra o mal que sintetiza-se no derramamento de sangue e no preconceito racial contra as populações negras, ainda que os escravizados negros tenham ajudado a construir (e na maioria dos casos foram eles mesmos, por seu trabalho, que construíram) as riquezas do país. A história oficial da abolição da escravatura e suas consequências, até então romantizada no próprio nome da lei “áurea” e numa imagem benevolente da Princesa Isabel, é enfrentada em um dos versos mais poderosos e geniais da música popular brasileira: “Pergunte ao Criador / Quem pintou esta aquarela / Livre do açoite na senzala / Preso na miséria da favela”. Nada mais enfático para questionar o pós-abolição, enredo central da escola: “1888 Lei Áurea. 1988, Cem anos de liberdade ou de discriminação? Ontem negro escravo, hoje gari, cozinheira. Só alguns deram certo” [4]. Um questionamento ao ideário de meritocracia e de empreendedorismo atualmente em voga no país, em que, na corrida pelo “sucesso”, os pontos de partida e os obstáculos a serem enfrentados são tão distintos para negros e brancos.

 

#11 1988: Beija-Flor – Sou Negro, do Egito à liberdade

Em 1988, a Beija-Flor também levou para a avenida a temática da escravidão. De fato, era um ano emblemático não apenas pelos cem anos da Lei Áurea, mas pelo amplo debate nacional de cunho progressista, de reconhecimento da própria história e de luta por direitos sociais que vinham no bojo de movimentos políticos, como a aprovação da Constituição Federal e da amplitude da noção de cidadania. O samba, composto por Aloísio Santos, Cláudio Inspiração, Ivancué e Marcelo Guimarães, reconhecia os feitos dos negros, mas também a realidade do negro no país. E conclui que, se a liberdade já havia raiado, a igualdade não.

 

carnaval

Desfile da Unidos da Tijuca, em 2003, foi uma representação em memória aos escravizados que retornaram à África, uma história pouco conhecida do nosso país

#12 2003: Unidos da Tijuca – Agudás, os que levaram a África no coração e trouxeram para o coração da África o Brasil

O enredo da Unidos da Tijuca, em 2003, contou a história da escravidão de um outro olhar: os negros escravizados brasileiros que voltaram à África. O samba composto por Rono Maia, Jorge Melodia e Alexandre Alegria conta que “Obatalá / Mandou chamar seus filhos / A luz de Orunmila / Conduz o Ifá, destino / Sou negro e venci tantas correntes / A glória de quebrar todos grilhões / Na volta das espumas flutuantes / Mãe-África receba seus leões”. O enredo foi inspirado no livro Agudás, os “brasileiros” do Benin, de Milton Guran. Com essa temática, “o carnavalesco Milton Cunha conta à sua maneira a história dos ex-escravos que saíram do Brasil para retornar à África, nem sempre para os mesmo lugares de onde teriam saído, e que acabaram se concentrando no Benin, antigo Daomé” [5]. O enredo, do retorno de escravizados ao continente africano levando para lá coisas do Brasil, é uma espécie de redenção [6], emanada da dor e do sofrimento de ancestrais em comum.

 

#13 2013: Unidos do Cabuçu – O Mestre-Sala dos mares

Em 2013, a Unidos do Cabuçu foi campeã do Grupo C do carnaval carioca com um samba-enredo composto por Flávio Viana, Déo, Charles Braga, Márcio Oliveira, Neyzinho do Cavaco e Adaílton Aquino. O samba é uma homenagem ao mestre-sala dos mares, o marinheiro João Cândido Felisberto, filho de escravizados, que liderou a Revolta da Chibata, em 1910. O historiador Eduardo Bueno se refere à Revolta da Chibata como um dos episódios mais libertários e sombrios da história do Brasil, que liderou o movimento contra os resquícios dos açoites predominantes no período de escravidão: uma reação dos marinheiros brasileiros (em sua maioria, negros) aos castigos físicos infligidos pelos oficiais da Marinha (em sua maioria, brancos), cujo ápice foi uma reação à condenação de um marinheiro a 250 chibatadas por ter ido a bordo com duas garrafas de cachaça, segundo a denúncia. As provações enfrentadas por João Cândido, que viveu na miséria após a revolta e morreu em 1969, quase caíram no esquecimento, até que João Bosco e Aldir Blanc compuseram o clássico da MPB Mestre Sala dos Mares, imortalizada na voz de Elis Regina e música que, por motivos óbvios, foi censurada no regime militar brasileiro.

 

#14 2018: Acadêmicos do Salgueiro – Senhoras do Ventre do Mundo

Em 2018, a escola de samba Salgueiro ficou na terceira colocação do carnaval carioca com um resgate do protagonismo das mulheres negras do mundo, mães, divindades, rainhas, guerreiras. O enredo partiu da alusão ao ventre africano que deu à luz à humanidade, passando pela linhagem das rainhas negras, que consolidaram a cultura e a arte e lideraram exércitos, pela personificação da autoridade divina e pela memória às guerreiras na luta contra o imperialismo europeu no campo de batalha africano, às heroínas quilombolas e às líderes das rebeliões históricas. O ponto de chegada são as matriarcas que formaram novos laços familiares, as “mães pretas” que acalentam e as primeiras empreendedoras do Brasil (doceira, quituteira, quitandeira), as que deram origem à diversas religiões de matriz africana, curandeiras e “Mães Primeiras”, e as escritoras que perpetuam os valores culturais, registrando em livros suas lutas e dura realidade, com destaque à escritora Carolina Maria de Jesus. No último setor, o carro Pietà Negra (em referência à obra de Michelângelo) fez uma alusão ao sofrimento de tantas mães negras das favelas e periferias, que tomam os corpos de seus filhos mortos no colo, fruto da violência urbana e policial.

 

tuiuti

A dramaticidade representada pela comissão de frente da Paraíso do Tuiuti, em 2018, foi uma das mais emblemáticas da história do carnaval carioca, lembrança incômoda da escravidão que ressoa nos dias de hoje

#15 2018: Paraíso do Tuiuti – Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?

Em 2018, a Paraíso do Tuiuti despontou como principal surpresa do carnaval carioca e chegou a um inesperado vice-campeonato, com um enredo que questionava o fim da escravidão. Tal como a Mangueira havia questionado, 30 anos antes, a suposta liberdade com o fim da escravidão oficial (livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela), a Tuiuti realça a existência do “cativeiro social” como forma de prisão, desigualdade e precarização enfrentada pelos descendentes de povos negros escravizados no país. Em um contexto de polarização política, a escola não teve receio de levar para a avenida um escancarado protesto político que arrebatou o país: a imagem da primeira Porta-Bandeira da escola, Danielle Nascimento, com o punho cerrado diante dos jurados, símbolo da resistência dos movimentos negros, é apenas uma das expressões do tom político carregado no enredo. O cartão de visita, uma necessária e importante representação da comissão de frente que encarnou o sofrimento dos castigos sofridos pelos negros escravizados e a sua redenção, provocou sentimentos que foram da vergonha (do nosso passado) à emoção, já nos primeiros minutos de desfile, acompanhado pela força de um dos mais belos e poderosos sambas dos últimos anos, reverenciado das arquibancadas. Em um ano de intervenção militar no Rio de Janeiro e de inúmeros casos de violação dos direitos humanos das populações das favelas, a imagem do capitão do mato do período escravocrata pode ser facilmente deslocado para os abusos de autoridade cometidos contra as populações negras nos dias atuais. O enredo prosseguiu, com o resgate da lembrança das mazelas da escravização: dos navios negreiros (tumbeiros) que serviam de tumba para escravizados, também “plantados” nas roças de cana de açúcar, à precarização estrutural, discriminação racial e cativeiro social que prolonga o sofrimento dos herdeiros da escravidão no Brasil.

Folguedos, bailes, discursos inflamados e fogos de artifício mergulharam o povo em dias de êxtase e glória.
Pão e circo para aclamação de uma bondade cruel, pois não houve um preparo para a libertação e ela não trouxera cidadania, integração e igualdade de direitos. Mais viva do que nunca, os aprisionou com os grilhões do cativeiro social.
Ainda é possível ouvir o estalar de seu açoite pelos campos e metrópoles. Consumimos seus produtos. Negligenciamos sua existência. Não atualizamos sua imagem e, assim, preservamos nossas consciências limpas sobre as marcas que deixou tempos atrás. Segue vivendo espreitada no antigo pensamento de “nós” e “eles” e não nos permite enxergar que estamos todos no mesmo barco, no mesmo temeroso Tumbeiro, modernizando carteiras de trabalho em reformadas cartas de alforria (Jaks Vasconcelos, carnavalesco).

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Neste artigo citamos apenas os sambas do carnaval carioca, tradicionalmente tido como o maior desfile de escolas de samba do mundo. Todavia, merece registro o título do carnaval de São Paulo em 2017 conquistado pela escola Acadêmicos do Tatuapé, que levou para a avenida o enredo Mãe-África conta a sua história: Do berço sagrado da humanidade ao abençoado menino da terra do ouro. “Para se diferenciar de todas as outras escolas que já falaram da África ao longo dos anos, a Tatuapé se apoiou na filosofia do Ubuntu, que prega compaixão e amor. Suas fantasias representavam os diferentes grandes reinos da história do continente e seus países atuais, além das religiões africanas, como o candomblé, o cristianismo e o islamismo” [7].

A despeito dos critérios utilizados nessa seleção, sabemos que há outras dezenas de enredos relacionados ao tema, em carnavais de outras cidades — muitos deles desconhecidos do grande público.


Fontes:
Galeria do Samba | Academia do Samba | Portela Web | Salgueiro | Samba de Terça | Jornal GGN |
O Globo | Canal Buenas Ideias |