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Livro para download: Cinema, vídeo, Godard

Baixe grátis o livro Cinema, vídeo, Godard, de Philippe Dubois

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Jean-Luc Godard é, evidentemente, um dos maiores nomes da história do cinema. Nascido em Paris, em 1930, foi um dos principais nomes do Nouvelle Vague, um movimento artístico do cinema francês que rompeu com os modelos e padrões de se fazer cinema até então. Desde a imposição do cinema de estúdio, até a fixidez das câmeras, as narrativas lineares (e quase previsíveis) e a moralidade das produções cinematográficas, tudo isso o Nouvelle Vague veio contestar. Incluiu no novo jeito de fazer cinema a montagem inesperada de diálogos , o foco na personalidade dos personagens (e não nas cenas em si mesmo) e nas situações banais e cotidianas, e incluía nas produções elementos do pop art e do teatro épico, com a incorporação de textos de Marx a Balzac.

Como expoente desse movimento, a partir do final da década de 1950, Godard fez seu cinema de vanguarda explorando os temas polêmicos, os dilemas e as perplexidades do século XX. “Seu primeiro longa metragem, “Acossado” (1959), foi ponto de referência na cinematografia francesa, com um relato anti-heróico que rompia com muitas convenções. Audacioso, o cineasta adotou inovações narrativas e filmou com a câmera na mão, rompendo regras até então invioláveis” [1]. A magnitude de Godard para o cinema expressa-se nos diversos prêmios que recebeu ao longo da carreira, incluindo os prêmios honorários pela importância do conjunto de sua obra para o cinema internacional, incluindo dois prêmios César (o Oscar da Europa), um Leão de Ouro Honorário, além do Oscar Honorário, em 2010.

No livro Cinema, vídeo, Godard, o autor Philippe Dubois dedica toda a terceira e última parte da obra a um exame aprofundado da obra e do legado do cineasta francês que, “como nenhum outro, problematizou  com tanta insistência, profundidade e diversidade a mutação das imagens“. [2]. O livro, formado por nove ensaios, por sua vez, trata justamente da questão das imagens para o vídeo e, em especial, para o cinema. Parte, no capítulo inicial, da discussão sobre a teoria das imagens e sua relação com o vídeo, indagando se u vídeo pode ser considerado como um corpo estético específico, uma arte em si mesma, com linguagem própria.

Philippe Dubois é professor no Departamento de Cinema e Audiovisual da Universidade de Paris 3 — Sorbonne Nouvelle — onde leciona teoria das formas visuais. É pesquisador do Instituto Universitário da França (IUF). Há várias décadas pesquisa e publica artigos e livros sobre imagem, fotografia, cinema, vídeo e pós-cinema. Uma de suas áreas de especialidade é a análise fílmica, um porte teórico-metodológico imprescindível para os críticos de cinema. Dubois também já foi crítico e redator da Revue Belge du Cinéma e colaborador da Cinemateca Real da Bélgica. Já esteve no Brasil várias vezes, participando inclusive de uma Aula Magna do curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina, cujo vídeo está disponível no YouTube.

Conforme descrito na apresentação do livro, ressalta que Dubois é um dos poucos pensadores que vêm desenvolvendo uma “reflexão concentrada sobre as atuais mutações do cinema, a perda de sua hegemonia sore a criação audiovisual, a emergência ruidosa do vídeo, o desafio imposto pela televisão e o panorama impreciso que tudo isso projeta num futuro próximo”. Podemos acrescentar a essa panorama a “magia das telas”, com a emergência dos dispositivos digitais e móveis e com a incorporação definitiva de câmeras em nosso cotidiano (vale lembrar que quando o livro foi lançado, ainda não havia YouTube, muito menos os fenômenos das transmissões ao vivo nas redes sociais, feitas com aparelhos celulares). A propósito, o próprio livro foi organizado a partir de um conjunto de ensaios escritos ainda em períodos anteriores nos quais a internet ainda não estava tão presente no cotidiano das pessoas. Todavia, Dubois não havia deixado escapar as nuances dessa mudança emergente.

As obras eletrônicas podem existir [..] associadas a outras modalidades artísticas, a outros meios, a outros materiais, a outras formas de espetáculo. Muitas das experiências videográficas são mesmo fundamentalmente efêmeras, no sentido de que acontecem ao vivo apenas num tempo e lugar específicos e não podem ser resgatadas a não ser sob a forma de documentação (quando existente). Como consequência dessa dissolução do vídeo em todos os ambientes, os profissionais que o praticam, bem como os públicos para os quais ele se dirige, foram se tornando cada vez mais heterogêneos, sem qualquer referência padronizada, perfazendo hábitos culturais em expansão, circuitos de exibição efêmeros e experimentais, que resultam em verdadeiros quebra-cabeças para os fanáticos da especificidade.

O vídeo é o meio do caminho entre o cinema (em que as imagens estão em relação de dependência de um roteiro prévio, um plano de fundo) e o computador, que dispensa tudo isso. Nesse sentido, pensar o vídeo em relação ao cinema implica repensar o vídeo não mais como uma mera forma de registrar e narrar, mas como um pensamento, um modo de pensar.

Acesse o livro na íntegra.


Veja também (vídeos):

O cinema de exposição – Aula Magna com Dubois no curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2013.

Entrevista de Dubois, durante o curso de Análise Fílmica ministrado na Universidade Federal do Ceará em 2010.

História e cultura negra: aprendizagem com o Carnaval

Publicado em 25 fev. 2017. Atualização: 28 fev. 2017 às 18:30.

Onze sambas-enredo com temática da cultura negra e questões sócio-raciais

carnaval

Desfile da Unidos da Tijuca, em 2003, em homenagem aos escravizados que retornaram à África

Embora frequentemente confundido com uma festa originariamente negra, o Carnaval brasileiro apresenta características distintas de região para região e quase nunca as questões próprias do universo étnico-racial negro são temáticas principais das escolas de samba. As primeiras manifestações populares do carnaval brasileiro se originaram no entrudo, festa de rua de origem portuguesa, da qual os negros escravizados não podiam participar. Foi com as festas religiosas de rua, nas quais senhoras negras, vestidas de branco, entoavam cânticos, que se iniciou a participação de negros no carnaval de rua. Todavia, foi só na virada para o século XX, com a criação dos blocos dos subúrbios, que as populações negras se incorporaram em definitivo nas festas do carnaval.

Os blocos de carnaval deram origem às primeiras escolas de samba no Rio de Janeiro, na década de 1920. Por mais de três décadas, os enredos dessas escolas contavam apenas a história oficial do Brasil — sobretudo a partir do Estado Novo, no qual o governo Getúlio Vargas incentivava, financeiramente, as agremiações que exaltavam os elementos da história nacional oficial. Essa situação passa a mudar no final da década de 1950. Edson Farias, no livro O desfile e a cidade: o carnaval-espetáculo carioca, situa como marco dessa virada o ano de 1960, quando o Grupo Salgueiro inclui a chamada “temática negra” no Carnaval, com o enredo “Palmares”. Segundo o autor, “o aspecto temático dos enredos torna-se o ponto de partida; em lugar das celebrações dos vultos da história brasileira convencional, excitam o “povo” a narrar seus próprios heróis e episódios encobertos. Ou seja, a proposta é incentivar a cultura popular a expressar toda épica dos subalternos no país”.

A partir daí, novas temáticas foram incorporadas pelas escolas de samba, incluindo personagens e episódios da história africana e afro-brasileira.

Contudo, expressões características das culturas e religiões afro-brasileiras incluídas nas letras nem sempre tornam as temáticas dos sambas-enredo temáticas da cultura negra, ou das questões sociais da população negra. Em 1991, por exemplo, a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, campeã do carnaval carioca, cantou “Aieieu Mamãe Oxum / Yemanjá Mamãe Sereia / Salve as águas de Oxalá / Uma estrela me clareia”, mas a sua temática era a água. Ou seja, embora o trecho se relacione aos orixás ligados à água, o tema não era propriamente elementos da cultura afro-brasileira. Assim, desfaz-se a impressão de que os temas de enredo das escolas de samba sejam, frequentemente, ligados à cultura negra africana e afro-brasileira.

Uma pesquisa de Andréa Pessanha publicada na revista Urutágua, em 2006, mostrou que, entre 183 sambas-enredo analisados, apenas 25 centravam as temáticas em “temáticas negras”, sejam elas de eventos, personalidades e questões próprias da realidade social das populações negras. Todavia, muitas temáticas eram secundárias (por exemplo, a homenagens a personalidades negras como Grande Otelo e Dorival Caymmi, portanto, não ligadas necessariamente a uma “temática negra”). Ainda, dos 183 sambas-enredo analisados, 92 não faziam qualquer referência a essas temáticas, o que mostra o quanto o senso comum pode se confundir quando se relaciona as variáveis “samba-enredo” e “temáticas negras”.

A seguir, listamos 11 sambas-enredo, desde 1960, cujo cerne das temáticas eram, efetivamente, questões sociais e raciais da cultura e história africana e afro-brasileira. Com suas diferentes maneiras de ver tais questões, muitas vezes tributária de criatividade do carnavalesco e de extensa pesquisa histórica, esses sambas mostram que o carnaval pode ensinar, com fantasia e batucada, tão bem quanto o saber que circula nas academias.

 

#01 1960: Acadêmicos do Salgueiro – Quilombo dos Palmares

Considerado um tema revolucionário para a época, o samba de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho “contava com toda a poesia e cadência melódica a luta de Palmares” [1]. Com componentes vestidos de escravos, pela primeira vez o negro viria a ser o protagonista de sua própria história. O Quilombo dos Palmares desceu às ruas. E a história dos enredos de carnaval estariam modificados para sempre.

#02 1968: Unidos de Lucas – Sublime Pergaminho

O samba escrito por Zeca Melodia, Nilton Russo e Carlinhos Madrugada trouxe ao carnaval uma visão romantizada da Lei Áurea, o “sublime pergaminho”. O samba, que já foi tema de questão do ENEM, embora não encontre respaldo em estudos históricos recentes, trouxe uma síntese da escravidão do país, do aprisionamento de negros africanos em navios negreiros até as leis abolicionistas dos anos de 1870 e 1880, que culminaria com a abolição da escravatura. Apesar de romantizar o episódio do fim da escravidão brasileira, o samba ficou marcado por trazer ao Carnaval um tema tabu para a época.

 

#03 1971: Acadêmicos do Salgueiro – Festa para um rei negro

O samba de Zuzuca ficou eternizado como “pega no ganzê” (cantado no refrão) e mudou o jeito de fazer samba-enredo: a partir dali, as escolas passaram a ter uma maior preocupação com os refrões dos sambas-enredo. O enredo se reportava a um episódio desconhecido da história brasileira, a visita do Rei do Congo ao Brasil no século XVII para solicitar a Maurício de Nassau sua intervenção para a paz entre os chefes de tribos africanas, cujos ânimos estavam acirradas em função de disputas comerciais europeias. O samba exaltava o rei negro e todas as festas e honrarias organizadas em sua homenagem, durante sua estadia em Recife.

 

#04 1972: Portela – Ilu Ayê

O samba Ilu Ayê (Terra da Vida), composto por Cabana e Norival Reis, prestava uma homenagem ao Negro na Civilização Brasileira, sua coragem, bravura, alegria e arte. Sem se ater a um personagem ou evento específico, o enredo teve como objetivo resgatar em forma de metanarrativa a importância e a influência do negro na constituição do povo e da cultura brasileira.

#05 1978: Beija-Flor – A criação do mundo na tradição Nagô

Com enredo do mítico carnavalesco Joãosinho Trinta, o samba de Neguinho da Beija-Flor, Gilson Dr. e Mazinho conta, como o título sugere, a criação do mundo a partir da narrativa nagô. Olorum, senhor do infinito, com sua respiração transforma o ar em água, lama e pedra, mistura avermelhada que gera Exu, o primogênito, que ajuda a criar, com outras entidades, o mundo, a vida e o amor. Trata-se de um descolamento das visões hegemônicas sobre a criação do mundo e coloca a cosmologia africana nagô no mesmo patamar de outras visões de mundo. O enredo inspirou o filme O Samba da criação do mundo, drama brasileiro de 1979.

 

#06 1979: Acadêmicos do Cubango – Afoxé

A Acadêmicos do Cubango é uma das mais tradicionais agremiações de carnaval da Grande Rio, da cidade de Niterói, onde sagrou-se campeã em 1979 com um dos sambas antológicos do carnaval carioca: Afoxé, composto por Heraldo Faria e João Belém, reverencia os festejos lúdico-religiosos originários de Lagos, antiga capital da Nigéria. Essa manifestação foi popularizada no Brasil a partir de finais do século XIX, expandida para outras regiões tendo como referência a cidade de Salvador. “Os afoxés representam um dos traços de resistência das camadas populares da sociedade brasileira que, através da lapidação espontânea do caldo de cultura, preservam e a todos brindam com parte do vastíssimo legado gestado no continente também chamado de ‘Berço da Humanidade’” [2].

 

#07 1984: Unidos da Ponte – Oferendas

Uma festa religiosa, das religiões de matriz africana. O samba Oferendas, de autoria de Jorginho, levou ao carnaval a temática das oferendas entregues aos orixás, em uma homenagem (e uma aula cultural) à religiosidade brasileira que é originária das tradições africanas. A letra é carregada de elementos dessas religiões, citando os orixás e as respectivas oferendas entregues pelos devotos.

 

#08 1988: Unidos de Vila Isabel – Kizomba, festa da raça

Quando você estiver assistindo a uma transmissão de desfile de escola de samba e ficar confuso(a) se algum comentarista falar que a escola trouxe um samba forte para a avenida, tome como exemplo esse samba. Considerado um dos mais belos e mais poderosos sambas enredo de todos os tempos, Kizomba, festa da raça, de autoria de Rodolpho, Jonas e Luís Carlos da Vila, entrou para a história do carnaval carioca e, é claro, da escola Unidos de Vila Isabel, que chegou ao seu primeiro título naquele ano, surpreendendo o público e desbancando as escolas favoritas. “Marcada por um ritmo forte e cadenciado, bem próximo da batida dos atabaques de terreiro, a música traz uma poesia igualmente intensa e transgressora, posto que busca desconstruir um dos mais caros mitos da nossa história oficial, aquele que atribui à generosidade da princesa Isabel todo o crédito pelo fim da escravidão no Brasil” [3]. O enredo traz fortes referências à resistência dos escravizados para a abolição da escravatura no país e atualiza a questão das relações étnico-raciais em um momento histórico em que todo o Ocidente se voltava para o regime de segregação racial na África do Sul (o apartheid), mostrando que a luta dos povos negros por igualdade ainda estava longe de ter fim: Vem a Lua de Luanda / Para iluminar a rua / Nossa sede é nossa sede / de que o “apartheid” se destrua. É um dos sambas enredo mais regravados por outros artistas.

 

#09 1988: Estação Primeira de Mangueira – Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão

No ano em que o país celebrava o centenário da abolição da escravatura, a Mangueira ergueu a voz contra o ideário predominantemente romantizado da promulgação da Lei Áurea e questionou se, de fato, a escravidão havia chegado ao fim. Composto por Alvinho, Hélio Turco e Jurandir e interpretado pela voz inconfundível de Jamelão, o samba entrou para a galeria dos maiores sambas já produzidos no país. O mote do enredo, no cerne, são as relações étnico-raciais, uma luta do bem contra o mal que sintetiza-se o derramamento de sangue e no preconceito racial contra as populações negras, ainda que os escravizados negros tenham ajudado a construir (e na maioria dos casos foram eles mesmos, por seu trabalho, que construíram) as riquezas do país. A história oficial da abolição da escravatura e suas consequências, até então romantizada no próprio nome da lei e numa imagem benevolente da Princesa Isabel, é enfrentada em um dos versos mais poderosos e geniais da música popular brasileira: “Pergunte ao criador / Quem pintou esta aquarela / Livre do açoite na senzala / Preso na miséria da favela”. Nada mais enfático para questionar o pós-abolição, enredo central da escola: “1888 Lei Áurea. 1988, Cem anos de liberdade ou de discriminação? Ontem negro escravo, hoje gari, cozinheira. Só alguns deram certo” [4].

 

#10 1988: Beija-Flor – Sou Negro, do Egito à liberdade

Em 1988, a Beija-Flor também levou para a avenida a temática da escravidão. De fato, era um ano emblemático não apenas pelos cem anos da Lei Áurea, mas pelo amplo debate nacional de cunho progressista, de reconhecimento da própria história e de luta por direitos sociais que vinham no bojo de movimentos políticos, como a aprovação da Constituição Federal e da amplitude da noção de cidadania. O samba, composto por Aloísio Santos, Cláudio Inspiração, Ivancué e Marcelo Guimarães, reconhecia os feitos dos negros, mas também a realidade do negro no país. E conclui que, se a liberdade já havia raiado, a igualdade não.

 

#11 2003: Unidos da Tijuca – Agudás, os que levaram a África no coração e trouxeram para o coração da África o Brasil

O enredo da Unidos da Tijuca, em 2003, contou a história da escravidão de um outro olhar: os negros escravizados brasileiros que voltaram à África. O samba composto por Rono Maia, Jorge Melodia e Alexandre Alegria conta que “Obatalá / Mandou chamar seus filhos / A luz de Orunmila / Conduz o Ifá, destino / Sou negro e venci tantas correntes / A glória de quebrar todos grilhões / Na volta das espumas flutuantes / Mãe-África receba seus leões”. O enredo foi inspirado no livro Agudás, os “brasileiros” do Benin, de Milton Guran. Com essa temática, “o carnavalesco Milton Cunha conta à sua maneira a história dos ex-escravos que saíram do Brasil para retornar à África, nem sempre para os mesmo lugares de onde teriam saído, e que acabaram se concentrando no Benin, antigo Daomé” [5]. O enredo, do retorno de escravizados ao continente africano levando para lá coisas do Brasil, é uma espécie de redenção [6], emanada da dor e do sofrimento de ancestrais em comum.

Atualização

Neste artigo citamos apenas os sambas do carnaval carioca. Todavia, merece registro o título do carnaval de São Paulo em 2017 conquistado pela escola Acadêmicos do Tatuapé, que levou para a avenida o enredo Mãe-África conta a sua história: Do berço sagrado da humanidade ao abençoado menino da terra do ouro. “Para se diferenciar de todas as outras escolas que já falaram da África ao longo dos anos, a Tatuapé se apoiou na filosofia do Ubuntu, que prega compaixão e amor. Suas fantasias representavam os diferentes grandes reinos da história do continente e seus países atuais, além das religiões africanas, como o candomblé, o cristianismo e o islamismo” [7].

 


Fontes:
Galeria do Samba | Academia do Samba | Portela Web | Salgueiro | Samba de Terça |

Sambas-enredo e educação: passagens históricas em sala de aula

Com personagens e passagens históricas em suas letras, sambas-enredo evoluem nas salas de aula

samba

Por Helena Cancela Cattani*

Quem descobriu o Brasil? Foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval? Como, se antes houve Colombo, Duarte e Vasco da Gama? E tem mais: o português “descobriu” ou conquistou? Quando, afinal, começa a História do Brasil? O que há de história na versão oficial?

O ensino dos eventos ocorridos por volta de 1500 fica muito mais instigante quando inclui esse tipo de questionamento. Além de aprender História, os alunos são levados a refletir sobre o próprio processo pelo qual ela é construída, em diferentes versões ainda hoje reproduzidas.

Melhor ainda quando essa discussão historiográfica aparece em linguagem popular, no embalo dos versos de sambas de carnaval:

Partiram caravelas de Lisboa,
Com o desejo de comercializar
As especiarias da Índia, e o ouro da África
Mas depois o rumo se modificou
Olhos no horizonte, um sinal surgiu
Em 22 de abril, quando ele avistou
Se encantou
(Imperatriz Leopoldinense, 2000)

 

Pois o tratado eu sei que existiu
Viajando foi às Índias
Vasco da Gama o navegador
(Foi quem comandou)
O acordo foi fechado
E novamente a Europa desfrutou
Então Cabral partiu, oficializou
Rezaram a missa como o rei mandou
(Acadêmicos do Salgueiro, 1995)

Mesma temática, diferentes formas de abordá-la. Enquanto o samba-enredo da Imperatriz enfatiza a visão mais tradicional do “Descobrimento”, o Salgueiro questiona algumas “coincidências” que cercam aquele período, como a assinatura do Tratado de Tordesilhas em 1494.

Sempre às voltas com assuntos históricos, os sambas de enredo funcionam como uma ferramenta didática diferenciada. Não foi à toa que, no final da década de 1920, as agremiações carnavalescas do Rio de Janeiro receberam o apropriado nome de escolas de samba. Embora haja controvérsia sobre o motivo original dessa designação, o fato é que essas “escolas” – hoje presentes não só no Rio, mas em outras capitais e até em municípios do interior – contam uma história em seus desfiles. É uma apresentação inédita e única, em que, por cerca de uma hora, apresentam suas versões carnavalizadas sobre fatos, eventos e personagens do passado – de figuras populares como Zumbi dos Palmares a soberanos como D. João VI, de revoluções marcantes, como a francesa, a temas mais particulares, como a história da cachaça. Por que não levar essas narrativas para dentro da sala de aula?

O samba geralmente provoca reações diferentes entre os alunos. Alguns, antes mesmo de entender a proposta, resistem por não gostarem do gênero musical. Outros se apressam a lembrar ao professor que os festejos de carnaval só acontecem em fevereiro, então não faz sentido ouvir sambas em outras épocas do ano. Superada esta ou aquela resistência inicial, o resultado é que a maioria das turmas que trabalham com esta proposta acaba por considerá-la muito positiva, e passa a interessar-se pelo tema após o início das atividades.

Até meados dos anos 1990, era obrigatório, nas escolas cariocas, abordar temáticas nacionais. E mesmo depois que a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) aboliu essa exigência, a maioria dos sambas continuou privilegiando a História do Brasil. É esta abundância de enredos que permite a análise e comparação entre versões e abordagens de um mesmo assunto.

Datas marcantes costumam inspirar desfiles comemorativos. Foi assim em 1988, no centenário da abolição da escravatura, quando a Unidos de Vila Isabel apresentou um desfile intitulado, Kizomba, a Festa da Raça, exaltando a luta negra. Seu samba cantava “Vem a Lua de Luanda/ Para iluminar a rua/ Nossa sede é nossa sede/ De que o apartheid se destrua”. Dois anos depois, estava oficialmente encerrado o regime segregacionista na África do Sul. Em 2007, a Porto da Pedra apresentou um enredo em homenagem àquele país, cujo samba (Preto e Branco a Cores) louvava o principal artífice político da conquista da igualdade racial: “Liberto permanece o pensamento/ Ele foi meu alento/ Quando o corpo foi prisão/ O nosso herói Mandela é”.

A alunos do primeiro ano do ensino médio [de uma escola] foi proposta uma análise comparativa dos dois sambas. O debate inicial centrou-se na questão de como era possível traçar semelhanças e diferenças entre as composições, que abordam assuntos semelhantes, mas com quase 20 anos de distância. Depois de uma exposição, feita pela professora, de elementos importantes para a compreensão dos desfiles, a turma elencou seus argumentos considerando não só as letras, mas o enredo e os elementos gráficos utilizados. Divididos em grupos, os alunos pesquisaram o contexto histórico em que esses sambas foram produzidos: o ocaso do apartheid, no fim da década de 1980, e a importância socioeconômica da África do Sul dos anos 2000. Os sambas permitem ainda o debate sobre as realidades dos dois países e suas transformações políticas e sociais ao longo do tempo, a fim de se obter uma melhor compreensão acerca da identidade étnica negra.

O exercício de criação de uma linha do tempo, aplicado a turmas de 7ª série do ensino fundamental, também pode contar com a ajuda de sambas-enredo. Alguns deles fazem verdadeiros passeios pela história universal. Um exemplo é o samba de 1998 da Unidos de Vila Isabel, “Lágrimas, Suor e Conquistas em um Mundo em Transformação”. O enredo, de autoria de Jorge Freitas, apresenta a história da civilização ocidental, da pré-história à Revolução Francesa. A partir das informações fornecidas pela letra, os alunos identificaram fatos e eventos, e observaram a coexistência destes através do tempo: “A luz de Roma se apaga”, “O clero, a bem da verdade, julgava o herege na Inquisição”, “O homem avança no velho mar”, “Da burguesia surge o renascer”, “Na França movimentos radicais deram ao mundo outra mentalidade”.

É importante incorporar manifestações relacionadas às comunidades dos alunos. Eles passam a observar questões ligadas a seu meio social, e assim desenvolvem maior interesse pelas atividades propostas. Alguns alunos, por iniciativa própria, podem trazer sambas que consideram relevantes ou que foram compostos pelas escolas às quais pertence o seu núcleo familiar.

O uso do samba não precisa ficar restrito ao ensino de História. Interações com outras áreas do conhecimento, como Geografia, Literatura e Artes Visuais, enriquecem o trabalho e aprofundam a compreensão dos alunos. No livro Para tudo não se acabar na quarta-feira: a linguagem do samba-enredo”, o pesquisador Júlio César Farias realiza um estudo linguístico de sambas-enredo e propõe sua utilização no ensino de Língua Portuguesa.

Farias lembra que a linguagem dessas composições se transformou ao longo do tempo. Na década de 1930, elas se constituíam de pequenos versos e incluíam partes improvisadas por repentistas. Durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), os sambas ficaram mais longos e incorporaram temas ufanistas, com expressões eruditas adaptadas de livros didáticos, reproduzindo o discurso oficial. A década de 1960 marcou a inserção de temas folclóricos e ligados à cultura negra, e entre os anos 70 e 80 houve a aceleração dos sambas, para atender a desfiles mais espetacularizados, tendo lugar no Sambódromo e com transmissão pela TV. É quando o pesquisador percebe a “diluição poética” dos sambas, em nome de rimas mais fáceis para conquistar o público.

Ainda assim, as letras mantêm grandes atrativos para os estudos históricos, a partir de elementos da epopeia literária: o tema é anunciado, feitos heroicos são exaltados, personagens e passagens históricas, mitificadas.

Aspectos visuais do desfile, como as fantasias e as alegorias, podem ser analisados pelo viés artístico e histórico. A escolha temática para o desfile e o meio onde se inserem as comunidades carnavalescas, assim como as diferentes formas de celebrações carnavalescas no Brasil, unem aspectos históricos e geográficos. Além disso, a construção das letras dos sambas observa particularidades de determinados meios sociais, no tempo e no espaço.

Se o carnaval criou escolas para ensinar samba, por que o samba não pode virar instrumento pedagógico? Como cantou a Acadêmicos de Santa Cruz em 2007, “No tic-tac das horas/ Nosso samba vira história”.

 

Saiba Mais – Bibliografia

FARIAS, Júlio César. O enredo de Escola de Samba. Rio de Janeiro: Litteris, 2007.
FARIAS, Júlio César. Para tudo não se acabar na quarta-feira: a linguagem do samba-enredo. Rio de Janeiro: Litteris, 2002.
PRASS, Luciana. Saberes musicais em uma bateria de Escola de Samba: uma etnografia entre os bambas da orgia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

Saiba Mais – Internet

http://www.galeriadosamba.com.br
http://liesa.globo.com/

* Historiadora e pesquisadora do carnaval do Rio Grande do Sul.
Esse texto foi publicado originalmente em 24 jan. 2011, 
na Revista de História.

Livro para download: Teorias da Comunicação

Baixe grátis o livro Teorias da Comunicação, de Mauro Wolf

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O semiólogo e sociólogo italiano Mauro Wolf (1947-1996) é considerado, ainda hoje, um dos mais influentes pesquisadores sobre a comunicação de massa. Discípulo do também italiano Umberto Eco, Wolf se interessou pelos estudos sobre o ‘mass media‘ e seus efeitos sociais — o que resulta em algumas de suas principais obras. Em “Teorias da Comunicação”, Wolf apresenta “uma análise crítica extremamente completa das teorias e modelos de análise mais importantes elaborados no decurso de vários anos de investigação”. Nas suas diferentes versões em língua portuguesa, essa obra tem sido referência bibliográfica básica em diferentes cursos da área de comunicação social no país.

A obra é dividida em duas partes, nas quais Wolf apresenta um panorama e uma evolução da pesquisa sobre comunicação de massa (‘mass media‘), entendida como “simultaneamente um importantíssimo setor industrial, um universo simbólico, um investimento tecnológico em contínua expansão, uma experiência individual cotidiana, um sistema de intervenção cultural e de agregação social”. A amplitude e a volatilidade dessas características coloca um desafio no estudo da comunicação de massa, justamente, como estudar um objeto em constante mutação de formas. A sinalização de Wolf para tentar contornar esse obstáculo é analisar os modelos teóricos e contextos de pesquisa que baliram, até então, os estudos sobre a comunicação de massa. A primeira parte do livro basicamente ocupa-se disso: discutir as principais teorias do mass media desenvolvidas no século XX e suas abordagens, escolas, representantes, conceitos. Muito embora, cronologicamente, as diferentes teorias tenham emergido sucessivamente, Wolf enfatiza que não existem fronteiras definidas entre elas, mas uma trama, uma rede que faz com que as diferentes perspectivas se entrecruzem, complementem, renovem, se choquem e alinhem.

A segunda parte do livro, como o título sugere, é destinada às tendências de pesquisa emergentes na época sobre os estudos da comunicação de massa. A primeira, relacionada ao estudo dos efeitos a longo prazo da comunicação de massa para a construção da realidade, a partir da hipótese do agenda-setting. Por essa hipótese, formulada ainda na década de 1970, a mídia é quem determina quais os assuntos que farão parte das conversas dos consumidores de notícias, ou seja, é um efeito social da mídia que seleciona e define a incidência de notícias sobre temas que o público irá ter acesso, consumir e discutir. Está relacionado ao que Bourdieu fala a respeito das estratégias utilizadas pela televisão, ao “mostrar escondendo e esconder mostrando” o que e “relevante” para o público ter acesso. Wolf faz uma análise dessa abordagem, inclusive apontando os limites e as possibilidades desse modelo. Já a segunda tendência são os estudos “da sociologia dos emissores aos newmaking“, teoria que no jornalismo discute as formas de produção de notícia. Por essa teoria, as notícias veiculadas pelos meios de comunicação não são um reflexo da realidade social, mas determinadas pelo padrão industrial de produção de notícias. Como existe uma abundância de fatos cotidianos, a organização do trabalho jornalístico se dá por meio de um processo de produção de notícia planejado como uma rotina industrial, no qual alguns critérios são levados em consideração, sobretudo o grau de noticiabilidade (a notícia que, convertida em mercadoria, possa ser mais vendida), os valores-notícia e as relações pessoais dentro da organização, incluindo o grau de interesse dos donos dos meios de comunicação em privilegiar determinados fatos e ocultar outros. Nesses casos, as notícias, responsáveis em grande parte pela formação da opinião pública, nada mais são do que a construção social de uma espécie de realidade que pode refletir mais, menos ou nem refletir o que socialmente acontece de mais importante no cotidiano.

Segredos do cinema: jornada do herói, quebra da quarta parede e Deus ex machina

O canal OmeleTV, no Youtube, passou a publicar, esse ano, vídeos que desvendam os mistérios do cinema. Selecionamos três que são temas recorrentes nas produções cinematográficas

omelete

Provavelmente você já conhece o site Omelete, ou já viu nas redes sociais algum post compartilhado por alguma de suas fan pages. No ar há 15 anos, o Omelete é um site especializado em cultura pop, principalmente cinema, séries de TV, games, livros e HQs. Com produções de artigos, críticas e entrevistas, entre outros materiais, a equipe do Omelete se difere dos demais sites especializados ao promover um amplo fórum de debates com seus seguidores, sobre os mais diversos temas.

No Youtube, o site mantém um canal, o omeleteve, atualmente com quase um milhão e meio de inscritos. No canal, é possível acompanhar programas ao vivo e gravados, principalmente sobre o mundo do cinema: análises de filmes, notícias, comentários dos apresentadores e especialistas do site. Os seguidores também podem participar de uma lista de discussão com, o melhor de tudo, moderação (xingamentos gratuitos não são tolerados, por exemplo).

Nesse ano, o Omelete criou, no YouTube, uma playlist com uma nova atração: o Segredos do Cinema. Nesse programa, são produzidos vídeos curtos que, como o nome indica, explica para os leigos em cinema alguns “segredos” dessa arte. Aproveitamos o ritmo de férias para conferir alguns deles e compartilhar, ao mesmo tempo, entretenimento e um pouco de conhecimento dessa área que mescla técnica e arte. Selecionamos três temas bastante recorrentes nos filmes e que certamente você já deve ter observado, talvez não com esses nomes: a teoria da jornada do herói — que, a propósito, não é exclusiva do cinema, mas das narrativas tão antigas quanto a de Ulisses, na Odisseia –, a chamada “quebra da quarta parede” (quando um personagem de um filme se desprende da narrativa e se dirige pessoalmente ao espectador), e as providenciais “Deus Ex Machina”, que repentinamente mudam a história da narrativa salvando o dia.

 

Deus Ex Machina

Oriunda do Latim, a expressão “Deus Ex Machina” significa “Deus surgido da máquina”. Apesar do nome, a expressão não tem nada a ver com questões religiosas. Trata-se apenas de um recurso literário utilizado por muitos roteiristas a fim de resolver enredos, utilizando uma solução improvável, mirabolante e nem sempre criativa. Normalmente essas soluções são inverossímeis, sendo muito utilizada em gêneros mais fantasiosos.

O site The Bookworm Scientist (2015) explica que “o Deus ex machina foi uma ferramenta bem comum nas obras literárias da Grécia, um contexto que ajuda a compreender a escolha do termo. Nas histórias gregas, é comum que deuses apareçam e intervenham divinamente no destino dos personagens, resolvendo num toque de mágica conflitos aparentemente sem solução. Em A Odisséia, a deusa Atena surge nas últimas linhas do poema, evitando o início de uma batalha”.

O site Pipoca Radioativa fez uma lista de filmes em que esse recurso é utilizado.

 

A quebra da quarta parede

A quarta parede é uma parede imaginária, na frente do palco do teatro, onde está situada a plateia. Trata-se, portanto, de uma barreira que separa personagens e público. A quebra da quarta parede é um recurso originalmente utilizado nas peças de teatro, quando um dos personagens “saía” da peça e se dirigia à plateia.

No cinema não há plateia em frente ao palco, mas há câmeras por meio das quais as imagens são levadas ao público. Em um artigo do Omelete, publicado no início de 2016 consta a explicação que “a ação de uma peça, filme ou série acontece dentro de quatro paredes. Quando essa “caixa” é rompida, acaba a ilusão de que o que se está vivendo (personagem)/ vendo (público) é real. […] O cinema usa constantemente esse método, seja pelo humor, como no caso de Deadpool, como um exercício de questionamento da própria linguagem, ou como estratégia na hora de usar a narrativa em primeira pessoa”.

 

Na internet é possível encontrar listas de filmes em que o recurso da quebra da quarta parede é utilizado. O próprio site Omelete fez uma lista de 15 filmes que fizeram isso. Se você tem um pouco mais de paciência — e tempo — pode conferir também 400 vezes em que a quarta parede do cinema foi quebrada.

 

A jornada do herói

Uma das teorias narrativas mais conhecidas que existe é a chamada teoria da jornada do herói, também chamada de monomito. A definição é de Joseph Campbell (1904-1987), um estudioso de literatura, mitologia e religião. Ainda na década de 1940, influenciado pela concepção de arquétipos de  Carl Jung, Campbell publicou o livro O herói de mil faces, e que explora o arquétipo exemplar do herói em diferentes narrativas religiosas e mitológicas que fundamentam outras narrativas no campo das artes, como no teatro, na literatura e, mais recentemente, no cinema.

Sinteticamente, o arquétipo do herói, independentemente da narrativa, envolve as mesmas etapas ou fases, não importa se você está falando de Harry Potter, Katniss Everdeen (de Jogos Vorazes), Ulisses, da Odisseia, ou Moisés. Esse ciclo — cujas fases podem não ser homogêneas nos diferentes arquétipos mitológicos, muito menos são homogêneas em termos de tempo cronológico entre uma fase e outra — é o que caracteriza a jornada do herói.

Na internet, é possível encontrar vários materiais de qualidade sobre o tema, de blogs especializados a artigos científicos. Mas você pode ir também direto à fonte e baixar o livro O herói de mil faces, de Joseph Campbell, para conhecer melhor essa teoria.