Arquivo mensal: março 2015

8 de março: ainda precisamos lembrar dessa data?

Particularmente, tenho “problemas” com datas comemorativas/celebrativas. E não necessariamente pelo fato de eu não gostar de comemorar aniversário, ou achar Natal e Ano Novo uma chatice, com aqueles padrões repetitivos de fazer tudo igual, ano após ano, a que boa parte da sociedade nossa adere. Embora isso talvez influencie, é claro, o que mais fico pensando é quando uma data sai do contexto e se transforma em outra coisa.

Na escola aprendi que em 13 de maio, por exemplo, se comemora (sic) a abolição da escravatura, e havia, nessas ocasiões, cartazes bem emblemáticos na escola, de escravos comemorando, deixando para trás as correntes que os aprisionavam. Mais tarde, ouvi um velho samba da Mangueira, em que o saudoso Jamelão questionava na letra: “será que já raiou a liberdade, ou será tudo ilusão? Será que a Lei Áurea […] não foi o fim da escravidão?”. E, mais pra frente, a ponderação da situação do negro “livre do açoite da senzala / preso na miséria da favela”. Confesso que me deu um nó na cuca adolescente, por mais um item que a escola havia me ensinado de forma distorcida. Mas, até onde me consta, 20 anos depois pouca coisa mudou.

Esse é um exemplo, dentre tantos, de o que datas podem ‘celebrar’ e como algumas delas podem ser cooptadas, corrompidas, ou use-se lá o termo que for. Algumas datas, obviamente, mais do que outras. O dia 8 de março é uma delas. Enquanto os RH das empresas presenteiam as mulheres com flores e bombons (ok, poderíamos aqui abrir um link para refletir/ponderar/discutir o que significa presentear mulheres com flores e bombons nessa data, mas vamos em frente), os empresários e donos dessas mesmas empresas reclamam das onerosas licenças maternidades, pausa para amamentação etc., para defender o pagamento de salários menores às mulheres. E, vez ou outra, aparecem teorias econômicas liberais para justificar “cientificamente” a diferença salarial entre homens e mulheres. É, parece, uma lógica morde-assopra para ‘compensar’ com flores, chocolate e cartõezinhos padronizados e pré-formatados e para “mostrar” que as empresas, ora, valorizam o dia 8 de março. Distorcendo o sentido original da data.

A questão que fica, nesse contexto, é: para que(m) precisamos celebrar 8 de março? Eis alguns motivos:

1. Para entender (e problematizar) as ‘teorias econômicas’ contrárias à igualdade de gêneros e ponderar discursos de que “daqui a pouco vão exigir quotas femininas para a construção civil e para o setor de mineração, sob o rótulo de ‘diversidade'”.

2. Para se posicionar criticamente quando algum político defender “que mulher deve ganhar salário menor porque engravida“.

3. Pelo direito de realizar eventos que celebrem o dia da mulher, sem motivar petições on-line contrárias à memória da data e do próprio evento.

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4. Para que o estupro não vire piada midiática na TV, nem que machistas venham defender aqueles que fazem piada disso.

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5. Para que as garotas possam ter o direito de coisas simples, como ir à escola

6. Para que, na escola, professoras não passem por constrangimentos porque preferem usar saias que nem são curtas.

7. Para que, uma vez escolarizadas e mais escolarizadas do que os homens, isso possa se reverter, de alguma forma, em maior igualdade na carreira e nos salários.

8. Para que as mulheres ganhem Nobel da Paz, mas não porque foram baleadas na cabeça por defenderem direitos básicos, como a escolarização de mulheres.

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9. Para que haja punição para quem ameaçar mulheres formadoras de opinião e líderes contra o machismo

10. … e para os valentões escondidos atrás de uma tela de computador que ameaçam estuprar quem luta contra o estupro

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11. … ou ameacem estuprar quem luta por suas ideias.

12.Para que a violência contra a mulher, para além de dados estatísticos contundentes, gere reflexão e conscientização — e, principalmente, justiça…

13. … a fim de inibir práticas rotineiras, como molestar uma garota no ônibus…

14. … e lamentações e luto como essa.

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15. Para que no futuro, não tenhamos mais que conviver com realidades como essa, em que a vítima se torna a culpada por ter sofrido o estupro, coletivo ou não.

16. … e para que que não comecemos achar normal ler notícias sobre estupros coletivos.

17. Para que os discursos (muitas vezes apenas discursos) em favor da igualdade de gênero não leve a enganos de que a questão está resolvida e ao equívoco de supor que a igualdade entre homens e mulheres é cada vez maior.

18. E para não calar as vozes que se levantam contra o machismo no mundo.

19. Para que, para promover a igualdade no mundo do trabalho, os governos não precisem estipular cotas para mulheres.

20. E para que haja menos divisão sexual do trabalho e mais igualdade de gênero…

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21. … e para que o dia 8 de março não sirva apenas para as mulheres receberem cartões prontos, flores e chocolates, e sim como símbolo de uma luta maior.

 

 

Um outro mundo é possível? Pra que serve a utopia?

Em um mundo cada vez mais louco, em que as certezas da Modernidade se foram e parece haver uma descrença generalizada nas promessas de futuro, a utopia de que um outro mundo é possível parece estar cada vez mais no plano da ficção, da poesia e do delírio.

Eduardo Galeano, poeta e escritor uruguaio, nos presenteia com seu Direito ao Delírio e nos faz lembrar para que serve a utopia, essa espécie em extinção que sempre insiste em se afastar de nós. Que pelo menos no delírio da poesia possamos sonhar com outro mundo possível.

El Derecho al Delirio (Eduardo Galeno) [versão declamada no vídeo]

Que acham se delirarmos por um tempinho?
Que acham se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia
Para imaginar outro mundo possível?
O ar estará limpo de todo veneno
Que não venha dos medos humanos e das humanas paixões.

Nas ruas
Os carros serão esmagados pelos cães
As pessoas não serão dirigidas pelos carros
Nem serão programadas pelo computador
Nem serão compradas pelos supermercados
Nem serão também assistidas pela TV.

A TV deixará de ser o membro mais importante da família
E será tratada como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupa

Será incorporado aos códigos penais o crime de estupidez
Para aqueles que o cometem por viver para ter ou para ganhar
Ao invés de viver para viver simplesmente
Assim como canta o pássaro sem saber que canta
E como brincam as crianças sem saber que brincam.

Em nenhum país irão prender os rapazes
Que se recusem a cumprir o serviço militar
Senão aqueles que queiram cumpri-lo
Ninguém viverá para trabalhar
Mas todos nós trabalharemos para viver.

Os economistas não chamarão mais o nível de vida ao nível de consumo
E nem chamarão de qualidade de vida as quantidades de coisas
Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram ser fervidas vivas
Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos
Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas
A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude
E ninguém, ninguém levará a sério alguém
Que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo.

A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes
E nem por falecimento nem por fortuna
Se converterá o canalha em um virtuoso cavaleiro.

A comida não será uma mercadoria,
Nem a comunicação um negócio
Porque a comida e a educação são direitos humanos
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como lixo
Porque não existirão crianças de rua
As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro
Porque não haverá crianças ricas
A educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la
E a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas,
Voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.
Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental
Porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória.

A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das tábuas de Moisés
E o sexto mandamento odernará festejar o corpo
A Igreja também ditará outro mandamento que Deus havia esquecido:
“Amarás a natureza da qual fazes parte”.
Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma
Os desesperados serão esperados
E os perdidos serão encontrados
Porque eles são os que se desesperaram, de tanto esperar
E eles se perderam, de tanto procurar.

Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham
Vontade de beleza e vontade de justiça
Tenham nascido quando tenham nascido
Tenham vivido onde tenham vivido
Sem que importem nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo.

Seremos imperfeitos
Porque a perfeição continuará sendo o chato privilégio dos deuses
Mas neste mundo,
Neste mundo trapalhão e fodido,
Seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro
E cada noite como se fosse a última.

Caro Ruivo… Não era bem isso

Analisar as questões midiáticas tem sido uma tarefa cada vez mais complexa, porque as próprias mídias se complexificaram, a partir do momento em que se proliferam mídias sociais que permitem a interação do público com os autores dos conteúdos, em muitos casos, e do público com o público. Mas também pela convergência midiática e pelos entrelaçamentos e repercussões de veiculações em cada tipo de mídia, nas quais, dependendo da abordagem ou da linha editorial (se existir) gera reações das mais variadas entre o público. Na última segunda-feira, publicamos no Facebook um post (abaixo) que repercutiu em alguns segmentos das redes sociais, sobre o relato de um suposto estupro, relatado pelo ator Alexandre Frota no programa Agora É Tarde.

Causou surpresa quando li o artigo assinado pelo músico Emir Ruivo, no blog Diário do Centro do Mundo, em tese, uma mídia jornalística alternativa, com postura mais crítica. Não tanto pela opinião do autor, mas pelo modo sensacionalista e minimizador com que o mesmo episódio foi tratado. A começar pelo título “O apedrejamento medieval de Alexandre Frota na história do Agora É Tarde“, com uma gravura que representa, aparentemente, uma cena da Inquisição (o fato do título do artigo falar em apedrejamento e a figura ser de uma fogueira não é o foco da discussão, por isso não vamos dar importância a ele).

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Bem, como não poderia deixar de ser, o artigo gerou alguma polêmica, algumas divergências, pontos de vista contrário e ofensas — fenômeno já corriqueiro nas redes sociais, como bem apreendeu a colunista do El País Eliane Brum, em outro artigo que compartilhamos no Facebook, sobre a boçalidade do mal. O que me chama atenção no artigo de Emir Ruivo é uma certa descontextualização do episódio e uma inversão de papeis, vitimizando o suposto agressor (suposto, porque ninguém sabe se o fato ocorreu e, em tendo ocorrido, em que medida é verdade). Para nós, a questão central (dada a conotação que a página tem) não são as bandeiras autênticas de luta contra o machismo, contra as diversas formas de violência (simbólicas ou não) perpetradas contra as mulheres ou da possível apologia ao estupro envolvida no caso, mas sim o papel da mídia e público diante de um relato que, por si só, já é repugnante.

O primeiro ponto a ser questionado é: houve “apedrejamento” de Frota na mídia? A resposta parece apontar que não. Exceto em alguns segmentos das redes sociais, como grupos e páginas de ativistas e de movimentos sociais, e em mídias alternativas, o episódio ganhou pouca repercussão nos meios de comunicação tradicionais. Mesmo nas timelines do Facebook não houve um linchamento moral generalizado, embora o vídeo original tenha tido mais de um milhão de acessos. Afirmar, nesse contexto, que o ator sofreu algum tipo de apedrejamento midiático soa um pouco presunçoso, haja vista não ter sido apresentada nenhum dado empírico que sustente a afirmação (o oposto também é verdadeiro; como não reunimos nenhum dado estatístico, estamos apenas citando o que foi ou não perceptível).

O segundo ponto a ser questionado, na argumentação de Ruivo, é sua constatação de que “não houve estupro ali”. Ele sugere que Frota seria louco se admitisse que cometeu estupro. Estamos falando de um (ex?) famoso que já admitiu, em entrevista, que não se importa com o que falam dele, desde que falem dele. E quanto mais, melhor. “Adoro a fama”, admitiu. Não se cogita, tampouco, a possibilidade de alguém relatar um estupro sem se dar conta do que está relatando. Afinal, dado o contexto do relato, o programa em questão e seu apresentador, não se pode descartar, a priori, qualquer maldade travestida de “brincadeira” (de mal gosto).

O terceiro ponto é a afirmação do autor do texto de que, “pela história, não parece ter havido resistência. Parece sim ter havido agressividade, talvez em demasia, mas consentida, e isso não é problema de ninguém”. Talvez essa seja a questão mais delicada de todo o relato. Como saber o que foi — ou não foi — consentido e em que circunstâncias? Acrescente nesse contexto não apenas o relato, mas todo o gestual utilizado para “demonstrar” a prática adotada por Frota na história que relatava. Em uma sociedade sadia, não parece que seja algo a ser ridicularizado, motivo de deboche ou chacota. E o episódio não acontece de forma isolada e apartada do restante da sociedade. Peguemos os dados de violência contra as mulheres, os números dos casos não denunciados por medo dos agressores, e então teremos um panorama mais geral do que é “consentir” nesse caso. Mesmo assim, se o autor do texto acha que foi uma relação consentida, estendemos nosso convite para ele se colocar no lugar da suposta mulher (estamos ‘acreditando’ que a história aconteceu).

Caro Ruivo: imagine que você está a sós com o Alexandre Frota, prestando um serviço qualquer a ele. Virado de costas. Acrescente-se o fato de que, além de ser fortão, o cara é famoso e você é você mesmo. E, sem mais, ele chega pra você e diz que quer te comer (assim mesmo como ele relata). Possivelmente você fica sem reação num primeiro momento (tal como ele relatou) e então ele arranca a tua roupa (suponho que você não estivesse usando vestido, então a cena precisou ser adequada), vira você de costas e te pega pelo pescoço para praticar o ato sexual com você. Como você reagiria, Ruivo? Reagiria? Propenso a tomar porrada (pegue as estatísticas de violência contra a mulher, contextualize como era essa situação anos atrás, uma vez que o relato é da época em que o ator estava fazendo sucesso na Globo, portanto faz um tempo…)? Ceder a uma situação como essa, no caso da mulher citada, seria simplesmente consentir?

Em quarto lugar, o argumento final, tido como mais importante pelo autor do texto: “procurem a tal mulher antes de apedrejar o cara”. Para quê? Fazer uma acareação pública? Não Ruivo, você entendeu errado. Não é disso que se trata. A mulher pode existir ou não, a história ser real ou não — ou pior, ser real e ser ainda mais atroz do que foi relatada pelo ator. O que está em questão é como um relato como esse, verdadeiro ou não, vira motivo de piada num programa de televisão, banalizando ainda mais a violência contra as mulheres e a apologia ao sexo sem consentimento (ceder é muito diferente de consentir, neste contexto).

O autor do relato não pode, simplesmente, passar à condição de vítima. Ainda que ocorresse um “apedrejamento” que você sugere, Ruivo, ainda assim Frota estaria longe da condição de vítima e os apedrejadores longe da condição de hipócritas. Além disso, minimizar o episódio porque Frota é “apenas” um “moleque e sem graça” é gerar um atenuante que não existe. Por fim, respondendo a uma leitora, Emir Ruivo escreve que “acho que ele Frota] fomenta cultura de machismo (de estupro, não sei)”. Se não sabe, não se proponha a escrever a respeito e a analisar o que houve e o que não houve de estupro no relato. Para além dessas questões, como o que nos interessa é a questão midiática, fica a questão: será que ‘medieval’ foi o ‘apedrejamento’ de Frota ou o bizarro espetáculo armado por ele e (de novo) por Rafinha Bastos, em busca de mais um minutinho de fama e mais um pontinho no IBOPE?

Onde mora a diferença?

Uma das questões centrais da educação, hoje, perpassa a diversidade e a inclusão. Preocupação preponderante da UNESCO em um mundo cada vez mais fragmentado — com esfacelamento de fronteiras políticas e culturais, em que as tecnologias e as mídias cada vez mais mundializadas são mediadoras importantes, tanto no sentido de reforçar estereótipos quanto no sentido de combater os preconceitos — a diversidade (cultural, de etnia, de gênero, física e estética etc.) e a inclusão de pessoas supostamente ‘diferentes’, longe de ser um problema superado, ainda é uma utopia. Bandeira de luta de várias ONGs, educadores, movimentos sociais e pessoas comuns, diversidade e inclusão caminham lado a lado e ainda dependem de campanhas de sensibilização, como as apresentadas nesse vídeo.

O vídeo, iniciativa da ONG Amor Sem Rótulos, gravado no Valentine’s Day (o dia dos namorados norte-americano) desse ano toca numa questão central não apenas para os estadunidenses, mas para todos nós. A mensagem é clara e direta: o amor não possui rótulos. “Antes de mais nada, somos todos humanos. É hora de abraçar a diversidade. Vamos deixar de lado os rótulos em nome do amor”, diz o site da ONG.

“Enquanto a grande maioria dos americanos considera-se sem preconceitos, muitos de nós sem perceber faz julgamentos precipitados sobre as pessoas com base no que vemos — quer se trate de raça, idade, sexo, religião, sexualidade, ou deficiência. Esta pode ser uma razão significativa para muitas pessoas se sentem discriminadas. O preconceito implícito (aquele subconsciente) tem profundas implicações para o modo como vemos e interagimos com outras pessoas que são diferentes de nós. Isso pode dificultar a capacidade de uma pessoa para encontrar um emprego, conseguir um financiamento, alugar um apartamento, ou chegar a um julgamento justo, perpetuando disparidades na sociedade. A campanha “O amor não tem rotulações” desafia-nos a abrir os olhos para o nosso preconceito e tentar pará-lo em nós mesmos, em nossos amigos, nossas famílias e nossos colegas”.

A campanha nos convida a repensarmos o nosso preconceito e a “testar” o quanto somos preconceituosos, no site em inglês lovehasnolabels.com.