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Vídeos USP: A escravidão que unificou Brasil, Cuba e Estados Unidos

Pesquisa que analisa as relações comerciais que mantiveram o tráfico de escravizados entre Brasil e Estados Unidos, mesmo após a proibição legal no século XIX, ganha série de vídeos no Youtube da USP.

Nessa semana, a página Ciência USP (no Facebook) publicou o vídeo sobre a tese defendida pelo professor e historiador Tâmis Peixoto Parron em 2015, que analisou como Brasil, Estados Unidos e Cuba se vincularam comercialmente e politicamente para manter o trabalho escravo de africanos em seus países, no século XIX. A tese recebeu o prêmio de melhor tese das ciências humanas no ano de 2016 da USP.

Parron analisou uma aparente contradição do século XIX: como foi possível a escravidão nas Américas chegar ao auge ao mesmo tempo em que a ideia de liberdade se espalhava pelo mundo, fruto, dentre outros, dos preceitos oriundos da Revolução Francesa e suas repercussões sobre o Ocidente. O período analisado vai de 1787 a 1846, portanto, após as leis abolicionistas que proibiam o comércio de escravizados. Segundo o autor da tese, sua pesquisa analisou como políticos, fazendeiros e empresários dos Estados Unidos, da monarquia espanhola e do Império do Brasil transformaram a escravidão negra em uma poderosa instituição internacional do século XIX. Segundo ele, o triunfo dos escravistas sobre os não escravistas durante boa parte do século XIX nasceu da combinação imprevista de pactos políticos nacionais e conjunturas econômicas globais. Para o orientador da pesquisa, prof. Rafael Marquese, a escravidão foi uma instituição social total, que permeava o conjunto da vida no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos — principalmente nos estados do sul. As classes políticas escravistas eram muito poderosas nesses países. Após a proibição do comércio de escravos, em 1831, chegaram ao Brasil mais de 700 mil escravos africanos em 20 anos. Estima-se que 60% dos navios negreiros que chegaram ao Brasil saíram de estaleiros norte-americanos. Quase 100 mil escravizados que saíram dos Estados Unidos, mesmo após a proibição oficial, também chegaram a Cuba, em apenas cinco anos, entre 1815 e 1820  (assista ao vídeo).

Para realizar a pesquisa, Parron utilizou como material o documento histórico, de várias fontes, conforme explica. A documentação envolve documentos oficiais e oficiosos, publicações de jornais e revistas dos três países, além de outras fontes internacionais. O resultado da pesquisa mostra como a integração de Estados Unidos, Cuba e Brasil formou uma espécie de subsistema escravista dentro de um sistema liberal do nascente capitalismo. Antes de se oporem, ambos os sistemas se alimentavam, o que reforça a constatação já presente em outras pesquisas de que, de fato, a escravidão serviu à expansão e consolidação do sistema capitalista. Para o autor, não existe liberdade política de se expressar e liberdade econômica de obter mercadorias sem alguma forma de coerção em algum espaço do mundo que esteja direta ou indiretamente ligado ao lugar onde se exerce a liberdade. Como exemplo, ele cita que para um camponês alemão ou um operário inglês poder comer mais, em alguma outra parte do mundo alguém tinha que trabalhar mais para produzir o que seria consumido.

Na Biblioteca Digital da USP é possível consultar os dados sobre a pesquisa, incluindo o arquivo da tese. Todavia, a USP disponibilizou em seu canal no Youtube Ciência USP uma série de quatro vídeos que abordam as temáticas tratadas na pesquisa.

No primeiro, há um resumo da tese “A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846”, que mostra que esses países usaram laços comerciais para sustentar a política escravocrata, apesar de o século XIX ser marcado pela aspiração à liberdade.

No segundo vídeo, é tratado sobre a chamada “crise do Missouri”: a divergência entre escravocratas e abolicionistas levou os Estados Unidos à Guerra da Secessão. A crise do Missouri, sobre se a região seria ou não escravocrata, foi um dos antecedentes da guerra.

No terceiro vídeo, para além da crise do Missouri, é mostrado como outros episódios políticos nos EUA tiveram implicações para outros espaços de atuação de seus protagonistas. Entre eles, a chamada crise de nulificação, na qual o estado da Carolina do Sul argumentou que teria direito de anular decisões federais.

O último vídeo da série comenta sobre a forma de fazer pesquisa na tradição historiográfica chamada de “História total”, uma análise que busca cruzar as fronteiras do político, do econômico e do social para fazer uma análise totalizante, conjugando esses campos.

O trabalho e os vídeos são importantes no atual contexto brasileiro. De um lado, porque serve para resgatar a importância da História enquanto conteúdo e enquanto ferramenta de pesquisa que permite não apenas compreender o passado, mas também combater os discursos ideológicos que constantemente relativizam ou naturalizam questões histórico-sociais complexas, negando o próprio passado das nossas formações culturais. Entre essas questões, o reconhecimento da escravidão como componente e indutor paradoxal do sistema capitalista; o reconhecimento das repercussões culturais e sócio-econômicas para compreender as relações étnico-raciais do Brasil atual e, ainda, a importância de fornecer respostas aos ataques políticos e ideológicos das proposições que têm tentado extirpar o acesso ao conhecimento históricos dos currículos escolares do país.