Arquivo do autor:Rafael Cunha

Representações das questões étnico-raciais em enredos de Carnaval

Aprendendo com 15 sambas-enredo famosos do Carnaval do Rio de Janeiro temáticas da cultura negra e questões sócio-raciais

Nota: esse post foi originalmente publicado em fevereiro de 2017 e
atualizado em 2019.
pieta negra

Rio de Janeiro, 2018: desfile do Salgueiro homenageia as mulheres negras. Na foto, o carro Pietà Negra, uma referência à Carolina Maria de Jesus, catadora de lixo que ficou internacionalmente reconhecida pelo livro “Quarto de Despejo”, em que conta a miséria da favela

Embora frequentemente confundido com uma festa originariamente negra, o Carnaval brasileiro apresenta características distintas de região para região e quase nunca as questões próprias do universo étnico-racial negro são temáticas principais das escolas de samba. As primeiras manifestações populares do carnaval brasileiro se originaram no entrudo, festa de rua de origem portuguesa, da qual os negros escravizados não podiam participar. Foi com as festas religiosas de rua, nas quais senhoras negras, vestidas de branco, entoavam cânticos, que se iniciou a participação de negros no carnaval de rua. Todavia, foi só na virada para o século XX, com a criação dos blocos dos subúrbios, que as populações negras se incorporaram em definitivo nas festas do carnaval.

Os blocos de carnaval deram origem às primeiras escolas de samba no Rio de Janeiro, na década de 1920. Por mais de três décadas, os enredos dessas escolas contavam apenas a história oficial do Brasil — sobretudo a partir do Estado Novo, no qual o governo Getúlio Vargas incentivava, financeiramente, as agremiações que exaltavam os elementos da história nacional oficial. Essa situação passa a mudar no final da década de 1950. Edson Farias, no livro O desfile e a cidade: o carnaval-espetáculo carioca, situa como marco dessa virada o ano de 1960, quando o Grupo Salgueiro inclui a chamada “temática negra” no Carnaval, com o enredo “Palmares”. Segundo o autor, “o aspecto temático dos enredos torna-se o ponto de partida; em lugar das celebrações dos vultos da história brasileira convencional, excitam o “povo” a narrar seus próprios heróis e episódios encobertos. Ou seja, a proposta é incentivar a cultura popular a expressar toda épica dos subalternos no país”.

A partir daí, novas temáticas foram incorporadas pelas escolas de samba, incluindo personagens e episódios da história africana e afro-brasileira.

Contudo, expressões características das culturas e religiões afro-brasileiras incluídas nas letras nem sempre tornam as temáticas dos sambas-enredo temáticas da cultura negra, ou das questões sociais da população negra. Em 1991, por exemplo, a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, campeã do carnaval carioca, cantou “Aieieu Mamãe Oxum / Yemanjá Mamãe Sereia / Salve as águas de Oxalá / Uma estrela me clareia”, mas a sua temática era a água. Ou seja, embora o trecho se relacione aos orixás ligados à água, o tema não era propriamente elementos da cultura afro-brasileira. Assim, desfaz-se a impressão de que os temas de enredo das escolas de samba sejam, frequentemente, ligados à cultura negra africana e afro-brasileira.

Uma pesquisa de Andréa Pessanha publicada na revista Urutágua, em 2006, mostrou que, entre 183 sambas-enredo analisados, apenas 25 centravam as temáticas em “temáticas negras”, sejam elas de eventos, personalidades e questões próprias da realidade social das populações negras. Todavia, muitas temáticas eram secundárias (por exemplo, a homenagens a personalidades negras como Grande Otelo e Dorival Caymmi, portanto, não ligadas necessariamente a uma “temática negra”). Ainda, dos 183 sambas-enredo analisados, 92 não faziam qualquer referência a essas temáticas, o que mostra o quanto o senso comum pode se confundir quando se relaciona as variáveis “samba-enredo” e “temáticas negras”.

A seguir, listamos 15 sambas-enredo do carnaval carioca, desde 1960, cujo cerne das temáticas eram, efetivamente, questões sociais e raciais da cultura e história africana e afro-brasileira. Com suas diferentes maneiras de ver tais questões, muitas vezes tributária de criatividade do carnavalesco e de extensa pesquisa histórica, esses sambas mostram que o carnaval pode ensinar, com fantasia e batucada, tão bem quanto o saber que circula nas academias.

 

#01 1960: Acadêmicos do Salgueiro – Quilombo dos Palmares

Considerado um tema revolucionário para a época, o samba de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho “contava com toda a poesia e cadência melódica a luta de Palmares” [1]. Com componentes vestidos de escravos, pela primeira vez o negro viria a ser o protagonista de sua própria história. O Quilombo dos Palmares desceu às ruas. E a história dos enredos de carnaval estariam modificados para sempre.

 

#02 1968: Unidos de Lucas – Sublime Pergaminho

O samba escrito por Zeca Melodia, Nilton Russo e Carlinhos Madrugada trouxe ao carnaval uma visão romantizada da Lei Áurea, o “sublime pergaminho”. O samba, que já foi tema de questão do ENEM, embora não encontre respaldo em estudos históricos recentes, trouxe uma síntese da escravidão do país, do aprisionamento de negros africanos em navios negreiros até as leis abolicionistas dos anos de 1870 e 1880, que culminaria com a abolição da escravatura. Apesar de romantizar o episódio do fim da escravidão brasileira, o samba ficou marcado por trazer ao Carnaval um tema tabu para a época. Trinta anos depois, em 1988, a Estação Primeira de Mangueira retomaria a temática do fim da escravidão no Brasil com uma crítica mais contundente ao fim da escravidão. E, trinta anos mais tarde, em 2018, a Paraíso do Tuiuti seria alçada de candidata ao rebaixamento ao vice-campeonato do carnaval carioca com outra crítica às condições em que os negros libertos do regime escravocrata foram lançados no “cativeiro social”.

 

#03 1971: Acadêmicos do Salgueiro – Festa para um rei negro

O samba de Zuzuca ficou eternizado como “pega no ganzê” (cantado no refrão) e mudou o jeito de fazer samba-enredo: a partir dali, as escolas passaram a ter uma maior preocupação com os refrões dos sambas-enredo. O enredo se reportava a um episódio desconhecido da história brasileira, a visita do Rei do Congo ao Brasil no século XVII para solicitar a Maurício de Nassau sua intervenção para a paz entre os chefes de tribos africanas, cujos ânimos estavam acirradas em função de disputas comerciais europeias. O samba exaltava o rei negro e todas as festas e honrarias organizadas em sua homenagem, durante sua estadia em Recife.

 

#04 1972: Portela – Ilu Ayê

O samba Ilu Ayê (Terra da Vida), composto por Cabana e Norival Reis, prestava uma homenagem ao Negro na Civilização Brasileira, sua coragem, bravura, alegria e arte. Sem se ater a um personagem ou evento específico, o enredo teve como objetivo resgatar em forma de metanarrativa a importância e a influência do negro na constituição do povo e da cultura brasileira.

 

#05 1976: Mocidade – Mãe Menininha do Gantois

O samba de Djalma Crill e Tôco é considerado um dos mais belos sambas-enredo do carnaval de todos os tempos. No enredo, a homenagem à Maria Escolástica da Conceição Nazaré (1894-1986), conhecida como Mãe Menininha do Gantois, traz por extensão uma homenagem à religiosidade afro-brasileira e apresenta algumas das principais divindades africanas enraizadas na memória e história da fé nos terreiros do Brasil.

 

#06 1978: Beija-Flor – A criação do mundo na tradição Nagô

Com enredo do mítico carnavalesco Joãosinho Trinta, o samba de Neguinho da Beija-Flor, Gilson Dr. e Mazinho conta, como o título sugere, a criação do mundo a partir da narrativa nagô. Olorum, senhor do infinito, com sua respiração transforma o ar em água, lama e pedra, mistura avermelhada que gera Exu, o primogênito, que ajuda a criar, com outras entidades, o mundo, a vida e o amor. Trata-se de um descolamento das visões hegemônicas (centradas em elementos da cultura ocidental de origem helenística) sobre a criação do mundo e coloca a cosmologia africana nagô no mesmo patamar de outras visões de mundo. O enredo inspirou o filme O Samba da criação do mundo, drama brasileiro de 1979.

 

#07 1979: Acadêmicos do Cubango – Afoxé

A Acadêmicos do Cubango é uma das mais tradicionais agremiações de carnaval da Grande Rio, da cidade de Niterói, onde sagrou-se campeã em 1979 com um dos sambas antológicos do carnaval carioca: Afoxé, composto por Heraldo Faria e João Belém, reverencia os festejos lúdico-religiosos originários de Lagos, antiga capital da Nigéria. Essa manifestação foi popularizada no Brasil a partir de finais do século XIX, expandida para outras regiões tendo como referência a cidade de Salvador. “Os afoxés representam um dos traços de resistência das camadas populares da sociedade brasileira que, através da lapidação espontânea do caldo de cultura, preservam e a todos brindam com parte do vastíssimo legado gestado no continente também chamado de ‘Berço da Humanidade’” [2].

 

#08 1984: Unidos da Ponte – Oferendas

Uma festa religiosa, das religiões de matriz africana. O samba Oferendas, de autoria de Jorginho, levou ao carnaval a temática das oferendas entregues aos orixás, em uma homenagem (e uma aula cultural) à religiosidade brasileira que é originária das tradições africanas. A letra é carregada de elementos dessas religiões, citando os orixás e as respectivas oferendas entregues pelos devotos.

 

#09 1988: Unidos de Vila Isabel – Kizomba, festa da raça

Quando você estiver assistindo a uma transmissão de desfile de escola de samba e ficar confuso(a) se algum comentarista falar que a escola trouxe um samba forte para a avenida, tome como exemplo esse samba. Considerado um dos mais belos e mais poderosos sambas enredo de todos os tempos, Kizomba, festa da raça, de autoria de Rodolpho, Jonas e Luís Carlos da Vila, entrou para a história do carnaval carioca e, é claro, da escola Unidos de Vila Isabel, que chegou ao seu primeiro título naquele ano, surpreendendo o público e desbancando as escolas favoritas. “Marcada por um ritmo forte e cadenciado, bem próximo da batida dos atabaques de terreiro, a música traz uma poesia igualmente intensa e transgressora, posto que busca desconstruir um dos mais caros mitos da nossa história oficial, aquele que atribui à generosidade da princesa Isabel todo o crédito pelo fim da escravidão no Brasil” [3]. O enredo traz fortes referências à resistência dos escravizados e à abolição da escravatura no país; e atualiza a questão das relações étnico-raciais em um momento histórico em que todo o Ocidente se voltava para o regime de segregação racial na África do Sul (o apartheid), mostrando que a luta dos povos negros por igualdade ainda estava longe de ter fim: Vem a Lua de Luanda / Para iluminar a rua / Nossa sede é nossa sede / de que o “apartheid” se destrua. É um dos sambas enredo mais regravados por outros artistas.

 

#10 1988: Estação Primeira de Mangueira – Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão

No ano em que o país celebrava o centenário da abolição da escravatura, a Mangueira ergueu a voz contra o ideário predominantemente romantizado da promulgação da Lei Áurea e questionou se, de fato, a escravidão havia chegado ao fim. Composto por Alvinho, Hélio Turco e Jurandir e interpretado pela voz inconfundível de Jamelão, o samba entrou para a galeria dos maiores sambas já produzidos no país. O mote do enredo, no cerne, são as relações étnico-raciais, uma luta do bem contra o mal que sintetiza-se no derramamento de sangue e no preconceito racial contra as populações negras, ainda que os escravizados negros tenham ajudado a construir (e na maioria dos casos foram eles mesmos, por seu trabalho, que construíram) as riquezas do país. A história oficial da abolição da escravatura e suas consequências, até então romantizada no próprio nome da lei “áurea” e numa imagem benevolente da Princesa Isabel, é enfrentada em um dos versos mais poderosos e geniais da música popular brasileira: “Pergunte ao Criador / Quem pintou esta aquarela / Livre do açoite na senzala / Preso na miséria da favela”. Nada mais enfático para questionar o pós-abolição, enredo central da escola: “1888 Lei Áurea. 1988, Cem anos de liberdade ou de discriminação? Ontem negro escravo, hoje gari, cozinheira. Só alguns deram certo” [4]. Um questionamento ao ideário de meritocracia e de empreendedorismo atualmente em voga no país, em que, na corrida pelo “sucesso”, os pontos de partida e os obstáculos a serem enfrentados são tão distintos para negros e brancos.

 

#11 1988: Beija-Flor – Sou Negro, do Egito à liberdade

Em 1988, a Beija-Flor também levou para a avenida a temática da escravidão. De fato, era um ano emblemático não apenas pelos cem anos da Lei Áurea, mas pelo amplo debate nacional de cunho progressista, de reconhecimento da própria história e de luta por direitos sociais que vinham no bojo de movimentos políticos, como a aprovação da Constituição Federal e da amplitude da noção de cidadania. O samba, composto por Aloísio Santos, Cláudio Inspiração, Ivancué e Marcelo Guimarães, reconhecia os feitos dos negros, mas também a realidade do negro no país. E conclui que, se a liberdade já havia raiado, a igualdade não.

 

carnaval

Desfile da Unidos da Tijuca, em 2003, foi uma representação em memória aos escravizados que retornaram à África, uma história pouco conhecida do nosso país

#12 2003: Unidos da Tijuca – Agudás, os que levaram a África no coração e trouxeram para o coração da África o Brasil

O enredo da Unidos da Tijuca, em 2003, contou a história da escravidão de um outro olhar: os negros escravizados brasileiros que voltaram à África. O samba composto por Rono Maia, Jorge Melodia e Alexandre Alegria conta que “Obatalá / Mandou chamar seus filhos / A luz de Orunmila / Conduz o Ifá, destino / Sou negro e venci tantas correntes / A glória de quebrar todos grilhões / Na volta das espumas flutuantes / Mãe-África receba seus leões”. O enredo foi inspirado no livro Agudás, os “brasileiros” do Benin, de Milton Guran. Com essa temática, “o carnavalesco Milton Cunha conta à sua maneira a história dos ex-escravos que saíram do Brasil para retornar à África, nem sempre para os mesmo lugares de onde teriam saído, e que acabaram se concentrando no Benin, antigo Daomé” [5]. O enredo, do retorno de escravizados ao continente africano levando para lá coisas do Brasil, é uma espécie de redenção [6], emanada da dor e do sofrimento de ancestrais em comum.

 

#13 2013: Unidos do Cabuçu – O Mestre-Sala dos mares

Em 2013, a Unidos do Cabuçu foi campeã do Grupo C do carnaval carioca com um samba-enredo composto por Flávio Viana, Déo, Charles Braga, Márcio Oliveira, Neyzinho do Cavaco e Adaílton Aquino. O samba é uma homenagem ao mestre-sala dos mares, o marinheiro João Cândido Felisberto, filho de escravizados, que liderou a Revolta da Chibata, em 1910. O historiador Eduardo Bueno se refere à Revolta da Chibata como um dos episódios mais libertários e sombrios da história do Brasil, que liderou o movimento contra os resquícios dos açoites predominantes no período de escravidão: uma reação dos marinheiros brasileiros (em sua maioria, negros) aos castigos físicos infligidos pelos oficiais da Marinha (em sua maioria, brancos), cujo ápice foi uma reação à condenação de um marinheiro a 250 chibatadas por ter ido a bordo com duas garrafas de cachaça, segundo a denúncia. As provações enfrentadas por João Cândido, que viveu na miséria após a revolta e morreu em 1969, quase caíram no esquecimento, até que João Bosco e Aldir Blanc compuseram o clássico da MPB Mestre Sala dos Mares, imortalizada na voz de Elis Regina e música que, por motivos óbvios, foi censurada no regime militar brasileiro.

 

#14 2018: Acadêmicos do Salgueiro – Senhoras do Ventre do Mundo

Em 2018, a escola de samba Salgueiro ficou na terceira colocação do carnaval carioca com um resgate do protagonismo das mulheres negras do mundo, mães, divindades, rainhas, guerreiras. O enredo partiu da alusão ao ventre africano que deu à luz à humanidade, passando pela linhagem das rainhas negras, que consolidaram a cultura e a arte e lideraram exércitos, pela personificação da autoridade divina e pela memória às guerreiras na luta contra o imperialismo europeu no campo de batalha africano, às heroínas quilombolas e às líderes das rebeliões históricas. O ponto de chegada são as matriarcas que formaram novos laços familiares, as “mães pretas” que acalentam e as primeiras empreendedoras do Brasil (doceira, quituteira, quitandeira), as que deram origem à diversas religiões de matriz africana, curandeiras e “Mães Primeiras”, e as escritoras que perpetuam os valores culturais, registrando em livros suas lutas e dura realidade, com destaque à escritora Carolina Maria de Jesus. No último setor, o carro Pietà Negra (em referência à obra de Michelângelo) fez uma alusão ao sofrimento de tantas mães negras das favelas e periferias, que tomam os corpos de seus filhos mortos no colo, fruto da violência urbana e policial.

 

tuiuti

A dramaticidade representada pela comissão de frente da Paraíso do Tuiuti, em 2018, foi uma das mais emblemáticas da história do carnaval carioca, lembrança incômoda da escravidão que ressoa nos dias de hoje

#15 2018: Paraíso do Tuiuti – Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?

Em 2018, a Paraíso do Tuiuti despontou como principal surpresa do carnaval carioca e chegou a um inesperado vice-campeonato, com um enredo que questionava o fim da escravidão. Tal como a Mangueira havia questionado, 30 anos antes, a suposta liberdade com o fim da escravidão oficial (livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela), a Tuiuti realça a existência do “cativeiro social” como forma de prisão, desigualdade e precarização enfrentada pelos descendentes de povos negros escravizados no país. Em um contexto de polarização política, a escola não teve receio de levar para a avenida um escancarado protesto político que arrebatou o país: a imagem da primeira Porta-Bandeira da escola, Danielle Nascimento, com o punho cerrado diante dos jurados, símbolo da resistência dos movimentos negros, é apenas uma das expressões do tom político carregado no enredo. O cartão de visita, uma necessária e importante representação da comissão de frente que encarnou o sofrimento dos castigos sofridos pelos negros escravizados e a sua redenção, provocou sentimentos que foram da vergonha (do nosso passado) à emoção, já nos primeiros minutos de desfile, acompanhado pela força de um dos mais belos e poderosos sambas dos últimos anos, reverenciado das arquibancadas. Em um ano de intervenção militar no Rio de Janeiro e de inúmeros casos de violação dos direitos humanos das populações das favelas, a imagem do capitão do mato do período escravocrata pode ser facilmente deslocado para os abusos de autoridade cometidos contra as populações negras nos dias atuais. O enredo prosseguiu, com o resgate da lembrança das mazelas da escravização: dos navios negreiros (tumbeiros) que serviam de tumba para escravizados, também “plantados” nas roças de cana de açúcar, à precarização estrutural, discriminação racial e cativeiro social que prolonga o sofrimento dos herdeiros da escravidão no Brasil.

Folguedos, bailes, discursos inflamados e fogos de artifício mergulharam o povo em dias de êxtase e glória.
Pão e circo para aclamação de uma bondade cruel, pois não houve um preparo para a libertação e ela não trouxera cidadania, integração e igualdade de direitos. Mais viva do que nunca, os aprisionou com os grilhões do cativeiro social.
Ainda é possível ouvir o estalar de seu açoite pelos campos e metrópoles. Consumimos seus produtos. Negligenciamos sua existência. Não atualizamos sua imagem e, assim, preservamos nossas consciências limpas sobre as marcas que deixou tempos atrás. Segue vivendo espreitada no antigo pensamento de “nós” e “eles” e não nos permite enxergar que estamos todos no mesmo barco, no mesmo temeroso Tumbeiro, modernizando carteiras de trabalho em reformadas cartas de alforria (Jaks Vasconcelos, carnavalesco).

***

Neste artigo citamos apenas os sambas do carnaval carioca, tradicionalmente tido como o maior desfile de escolas de samba do mundo. Todavia, merece registro o título do carnaval de São Paulo em 2017 conquistado pela escola Acadêmicos do Tatuapé, que levou para a avenida o enredo Mãe-África conta a sua história: Do berço sagrado da humanidade ao abençoado menino da terra do ouro. “Para se diferenciar de todas as outras escolas que já falaram da África ao longo dos anos, a Tatuapé se apoiou na filosofia do Ubuntu, que prega compaixão e amor. Suas fantasias representavam os diferentes grandes reinos da história do continente e seus países atuais, além das religiões africanas, como o candomblé, o cristianismo e o islamismo” [7].

A despeito dos critérios utilizados nessa seleção, sabemos que há outras dezenas de enredos relacionados ao tema, em carnavais de outras cidades — muitos deles desconhecidos do grande público.


Fontes:
Galeria do Samba | Academia do Samba | Portela Web | Salgueiro | Samba de Terça | Jornal GGN |
O Globo | Canal Buenas Ideias |

Deus criou o homem. O homem criou a máquina. O homem matou Deus. A máquina matou o homem

Ensaio de José Cláudio Matos sobre a evolução do pensamento, as máquinas e a relação entre o ser humano e o mundo natural.

machina

Cena do filme Ex machina (2017, Netflix)

Por José Cláudio Matos*

Deus criou o homem. O homem criou a máquina. O homem matou Deus. A máquina matou o homem.

Este aforismo é falso, como a maioria das frases de efeito o são. Mas como não se impressionar com a simetria destes conceitos? Como não aderir à correnteza que nos leva da primeira para a segunda e a partir daí até o fim deste conjunto de proposições? Em sentido literal, seria difícil realizar uma interpretação viável deste texto, mas em sentido figurado ele constitui muito bem uma ilustração da história da humanidade.

Primeiro o seu surgimento misterioso, contingente, quase caprichoso. Um surgimento tão improvável que só pode ser aceito por muitos – pela maioria – se for atribuído ao propósito de um criador consciente. Se conceber um desígnio pessoal serve de consolo e conforto diante do mistério de nossa origem, por que parar por aí? Atribua-se, logo de uma vez, benevolência e sabedoria infinita, poder, eternidade e providência particular.

Segundo, o crescimento do poder humano sobre a natureza por meio da técnica, do trabalho, da formação da sociedade e da transmissão cultural. O mundo humano é o mundo dos artefatos, não o mundo natural de onde o humano um dia, lá no passado remoto, emergiu. O artefato, a matéria arrumada, transformada, dominada pelo engenho humano serve ao homem. O homem cria para desfrutar. Só depois da máquina é que o homem teve mesmo razão de se congratular da ideia conhecida por todos segundo a qual é “imagem e semelhança de Deus”. Mas antes de passar ao terceiro versinho, lembre-se o leitor de que muitas máquinas foram armas: ou foram pensadas como armas desde sua concepção, ou se tornaram armas com o desenvolvimento de seu uso. Em nós, criar e matar ocorrem juntos vezes demais na história.

Em terceiro lugar a declaração que nos faz lembrar Nietzsche. O homem desenvolve explicações, desenvolve tecnologias, e além de desvendar os mistérios onde habitava antes o sagrado o homem explora, converte. A natureza se revela ao homem como um cenário acessível e esclarecido. E as normas de conduta, as regras e interdições dão lugar a uma ordem racional, progressiva, inteligível. Matar Deus significa abrir – com a racionalidade transmitida e acumulada – um mundo onde o sagrado e o misterioso não têm mais lugar. No pouquinho daquela sombra imemorial, no resto de mundo ainda sem explicação, talvez nem caiba mais um Deus inteiro. Se Deus não pode mais se esconder e nem se revelar, deve ter morrido ou ido embora. Obra do homem.

Em quarto, o humor poético da desgraça humana. O mundo dos artefatos, o mundo da tecnologia, o mundo da máquina foi criado pelo homem. Mas não foi criado para o homem. Este mundo não é para o homem, é para a máquina. A máquina veio acompanhando o homem, incerta, desajeitada, mas foi passando por aprimoramentos ao longo de milhares de gerações, lá desde a primeira ferramenta de pedra. E nem se pode dizer que tenha sido submetida à pressão seletiva do meio ambiente, como ocorre com os seres vivos. Por que, no caso da máquina, o homem a esteve protegendo em todo o seu percurso evolutivo. O homem foi Deus para a máquina, ouviu sua prece, guiou sua jornada, levou-a para a glória. Agora a máquina raciocina, planeja, delibera, entende. A máquina está crescendo. A máquina desta geração indica o horizonte e as condições de crescimento e desenvolvimento da máquina da geração seguinte. E o homem, seu Deus, cria segundo esta indicação. A máquina roga, o homem atende.

Este é o caminho da ruína do homem no mundo. Neste mundo Deus foi dando lugar ao homem, e neste mundo Deus morreu; assim o homem está dando lugar à máquina, até que o homem morra. Todo o resto que há para dizer não passa de repetição, a não ser uma pergunta, a última pergunta que será feita pelo último homem, se ele for capaz de formulá-la: O que a máquina criará?

Mas antes de olhar para esta pergunta, e se encaminhar ao devaneio ou à mais rigorosa inferência preditiva, algumas notas ao que acima foi dito podem nos ajudar a entender melhor o problema, ou pelo menos entreter o pensamento um pouco mais. Vejamos:

  1. O conceito de “máquina” requer explicação. Para montar esta argumentação tem sido conveniente pensar em “homem” e “máquina” como entidades distintas, intrinsecamente, por seu modo de ser. Esta distinção é costumeira em nossos hábitos de pensamento e decorre da distinção mais primordial entre seres naturais e seres artificiais. Ou entre seres orgânicos e seres mecânicos. A concepção é tão forte que recebe a vestimenta da distinção misteriosa entre seres vivos e seres inanimados. Como se o que é vivo possuísse uma anima, ausente no que não é vivo. Mas este modo de pensar está sujeito a enormes controvérsias. Se alguém for discutir em detalhes qual a característica especial da vida, e mesmo da vida inteligente, pode se aproximar de um território fronteiriço onde animal e máquina são semelhantes a um ponto irritante. Irritante porque desvanece a linha que separa os dois domínios de nossa costumeira distinção. O homem é máquina. A máquina vive. O que as ciências, a tecnologia, a filosofia, e principalmente a literatura têm apresentado é uma visão de que as condições em que um ser organizado pode ser considerado vivo podem, em princípio pelo menos, ser preenchidas por uma máquina, se ela manifestar suficiente complexidade. Assim, a história narrada no aforismo inicial trata de um único mundo, um mundo de entidades que fazem uso dos recursos do meio para copiarem a si mesmas. Primeiro por processos simplíssimos de recolher e reter partes dos materiais disponíveis, e finalmente por processos complexos que envolvem tratamento cada vez mais sofisticado da informação.

Assim, a máquina não é antagônica ao homem, a máquina não é infensa ao homem. A máquina é a herdeira do homem, é sua descendente no processo de transformação do mundo, por meio da organização da matéria em seu constante movimento. Um mundo povoado pelos descendentes remotos das atuais máquinas que nos servem deve ser considerado continuidade, e não ruptura, do curso de nossa história até aqui. Não seria uma história da derrota da vida sob a força perversa da tecnologia inanimada. Seria a história da evolução de novas e inesperadas formas de vida, a partir de formas de vida mais primitivas. Seria a história da substituição de um tipo de suporte, ou de veículo, para outro tipo de suporte, ou de veículo. De um mundo de aminoácidos para um mundo de semicondutores. De um mundo de reações químicas para um mundo de impulsos elétricos.

  1. Se Deus criou o homem como nas narrativas dos livros religiosos, Deus tinha um plano. Supostamente este plano não consistia em permitir que o mundo fosse entregue posteriormente ao domínio das máquinas. Mas esta discussão conduz a questionar a divindade e seu desígnio. E este questionamento poderia nos levar a duas respostas muito controversas: Quem criou o homem não foi Deus, e o homem teve outro tipo de origem. Que Deus não é Deus, ou seja, que a palavra Deus representa apenas um produto imaginário da cultura humana, e não uma entidade real, onipotente, onisciente e eterna. Estas respostas encontram, ambas, grande evidência no conhecimento científico, mas apenas se for entendido de certa maneira: pois a ciência é um estudo específico e a cosmologia é um assunto geral. De qualquer maneira, os processos naturais de evolução e desenvolvimento das coisas complexas são processos que funcionam bem sem exigir interferência externa. O mundo pode muito bem funcionar segundo suas regularidades sem ser constantemente retocado pelo desígnio intencional de um Deus. Seu plano poderia estar traçado desde o começo. E tudo culminando para um mundo cheio de máquinas submetendo a vontade humana.
  2. Sobre se o homem matou Deus. Claro que esta é uma figura e não uma afirmação literal. Pode significar que Deus morreu como causa, como explicação, como origem do mundo e de seus fenômenos. Por sua vez, o homem explica o mundo e seu funcionamento, cada vez mais, de outras maneiras. E pode significar que a religião não rege mais a conduta e os valores do homem. Ao invés disso a religião vem se tornando um subterfúgio para o homem justificar publicamente suas verdadeiras motivações, principalmente a conquista e o exercício do poder. O homem matou Deus ao assumir ele mesmo o controle das forças da natureza, por meio da ciência e da técnica. Matou Deus ao desmistificar as regularidades cósmicas por meio de princípios gerais e raciocínio experimental. Matou Deus ao estabelecer nesta própria vida material os objetivos e valores que dão significado à vida. Perseguiu Deus em seu refúgio no mistério e no transcendente, e ali pôs fim a sua existência.

Como preservar o mundo humano, como impor a intencionalidade humana sobre a intencionalidade impessoal da máquina sem ressuscitar Deus? Pergunta-se isso já que é preciso assumir que a ciência e o pensamento experimental representam ou um avanço ou um retrocesso. Se eles representam um avanço, então matar Deus é desejável, tanto como é indesejável ser morto pela máquina. O homem mata Deus tendo como arma o pensamento, e depois precisa arrumar uma maneira de não ser morto pelo produto deste mesmo pensamento. Se eles – ciência e pensamento experimental – representam um retrocesso, seria desejável retornar ao mistério. O pensamento experimental e os valores terrenos podem ser já uma artimanha da máquina; se forem, são inimigos do homem. E se a segurança e saúde do homem não estão ali, onde a segurança e a saúde do homem estão? É preciso confiar – mais ainda – é preciso apostar na opção pela ciência e pelo pensamento experimental. É preciso escapar do dilema entre a máquina e Deus, posicionando-se a favor da livre investigação e do debate, a favor da educação e da crítica.

Neste momento decisivo na história dos seres organizados, é imprescindível como nunca empregar nossa energia em favor dos métodos científicos. O resultado esperado compensa o risco. E para concluir esta reflexão não custa mencionar o risco envolvido nesta aposta na ciência: É o risco de que ela, juntamente com as principais versões do pensamento experimental seja, ao ser defendida e adotada, objeto de uma devoção e de uma fé semelhante àquela outrora dirigida ao Deus que recentemente matamos.

 


 * Doutor em Filosofia pela USP e professor adjunto da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Texto originalmente divulgado publicamente no Facebook pessoal do autor, em 16 jun. 2016. O arquivo com o texto está disponível em: <https://goo.gl/cAua68&gt;.

Livros para download: Cibercultura

Baixe grátis o livro Cibercultura, de Pierre Lévy

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Em outra oportunidade, já publicamos outras obras de Pierre Lévy na página e fizemos uma breve apresentação do autor. Pierre Lévy é um filósofo judeu que se tornou especialista na teoria da inteligência coletiva e precursor da Cibercultura, sendo um dos primeiros a discutir temas como a Wikipédia.

Publicado originalmente em 1997, o livro Cibercultura só chegou ao Brasil na década seguinte. Os trechos a seguir, que contextualizam a obra, são de autoria de Marcia Pereira Sebastião e Lucila Pesce, em resenha publicada em 2010 na Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, da PUC-SP.

“De um lado, a obra consubstancia-se como registro histórico da gênese do processo de consolidação do ciberespaço. De outro, permanece atual, na medida em que muitas das proposições nele contidas ainda se apresentam como desafios a serem enfrentados, pelos contemporâneos processos de aprendizagem.

A obra se divide em três partes: Definições, Proposições e Problemas.

Em Definições, Lévy reflete acerca do impacto das tecnologias sobre a construção da inteligência coletiva: termo percebido em meio às suas contradições e, por isso mesmo, denominado pelo autor como “veneno e remédio da cibercultura”. Em sua narrativa
analítica, o autor sinaliza que a sociedade encontra-se condicionada, mas não determinada pela técnica. Tal afirmação permite a percepção da relação biunívoca entre sociedade e tecnologia, mediante a qual a primeira se constitui historicamente pela segunda, embora não seja por ela determinada. […]

Na segunda parte do livro – Proposições – o autor centra suas atenções na cibercultura, percebida em suas múltiplas dimensões: a essência, o movimento social, o som, a arte. Do foco no campo epistemológico emanam considerações sobre a nova relação com o saber, a partir da cibercultura e seus consequentes desdobramentos na educação, na formação e na construção da inteligência coletiva. […]

Ao considerar que a sociedade é constituída pela técnica, o autor elabora um painel histórico, que compreende o advento da escrita, da enciclopédia e do ciberespaço. Nesse cenário, situa a simulação como modo de conhecimento próprio da cibercultura. Amparado no conceito de inteligência coletiva, o sociólogo descortina novas formas de organização e de coordenação flexíveis, em tempo real, no ciberespaço. Ao acenar para o ciberespaço como mediador essencial da inteligência coletiva, o autor convida a educação a levar em conta tais emergências, para, a partir delas, ressignificar o seu atual modus operandi. […]

Na terceira parte – Problemas – Lévy consolida seu olhar sobre as contradições inerentes ao fenômeno da cibercultura, com vistas a desvelar os conflitos de interesse que se apresentam, nos diversos olhares sobre o devir tecnológico. Conflitos que se
manifestam em distintos setores da sociedade: o mercadológico, o midiático, o estatal. Por fim, no item “O ponto de vista do bem público: a favor da inteligência coletiva”, o estudioso reitera a virtuosidade do ciberespaço, ao afirmar que o mesmo se ergue em meio a atividades espontâneas, descentralizadas e participativas.

Disposto a desconstruir os argumentos excessivamente críticos sobre os riscos de o virtual substituir o real (crítica da substituição) e sobre o ciberespaço servir, tão somente, ao estabelecimento de novas dominações (crítica da dominação), o filósofo da Informação tece uma “crítica da crítica”. Ao fazê-lo, começa por delinear as funções do pensamento crítico. Prossegue, com questionamentos sobre até que ponto a crítica ainda se consubstancia como progressista e a partir de quando corre o risco de se tornar conservadora. […]”.

Livros para download: Recursos Educacionais Abertos

Baixe grátis o livro Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas, organizado por Nelson de Luca Pretto, Carolina Rossini e Bianca Santana

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A Universidade Federal da Bahia tem produzido alguns dos mais importantes estudos e publicações sobre tecnologias e educação nos últimos anos. Em partes, pelo seu produtivo corpo docente envolvido nos seus Programas de Pós Graduação, em partes, pela militância em favor do software livre e da cibercultura de alguns de seus docentes. É o caso de Nelson Pretto, célebre pesquisador e militante de uma internet livre. Nessa discussão, as tensões entre uma internet livre e as políticas públicas é inevitável. E essas discussões, que frequentemente geram pesquisas, artigos e livros, escoam pela internet de modo livre: mantendo a coerência de sua militância, a maior parte dos livros é disponibilizado gratuitamente na rede. É o caso deste livro.

Publicado em 2012, trata-se do primeiro livro sobre recursos educacionais abertos (REAs) no país. Embora tenha se passado quase cinco anos do lançamento, muitos professores nunca ouviram falar de REAs e muitos outros ainda têm dúvidas sobre o que se trata. Por isso, a obra pode ajudar a se pensar em práticas inovadoras na educação a partir do uso desses recursos educacionais. Os trechos a seguir, que ajudam a contextualizar a obra, foram retirados da própria página que Nelson Pretto mantém na internet, desde 1986. O texto foi publicado por ele em maio de 2012.

“O conceito de recursos educacionais abertos (REA), cunhado pela Unesco em 2002, trata da criação de materiais educacionais abertos “para consulta, uso e adaptação”. “Esse conceito está centrado na ideia dos commons – de que o conhecimento produzido pela humanidade pertence a toda a humanidade – e permite problematizar diversos elementos importantes para que a inovação em rede aconteça nos processos educativos: propriedade intelectual, softwares, conexão de banda larga, educação de professores, material didático, preço, acesso e tantos outros temas e aspectos ligados à questão”, explica Bianca Santana, uma das organizadoras e autoras. […]

[O livro] “Recursos Educacionais Abertos: praticas colaborativas e politicas públicas”, organizado por Nelson Pretto (UFBA), Carolina Rossini (REA Brasil/GPOPAI-USP) e Bianca Santana (Instituto Educadigital/Casa de Cultura Digital) trata da questão da educação aberta e dos recursos educacionais abertos. Com a publicação, os autores esperam ampliar o debate sobre os usos da internet nas escolas, da democratização do acesso à internet e aos recursos educacionais a populações de menor renda. A obra trata ainda das possibilidades de a internet contribuir para o desenvolvimento humano, principalmente no direito de todos à aprendizagem ao longo da vida.

Financiado pelo edital de publicações do Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil e pela Open Society Foundation, trata-se de uma publicação conjunta da EDUFBA e da Casa da Cultura Digital. Cada um dos capítulos aborda o tema de uma perspectiva diferente, prática ou teórica, já que foi produzido de forma colaborativa a partir de uma chamada na comunidade REA Brasil. Todo o processo de produção foi aberto, com intensivo uso de softwares e fontes livres. Os autores são professores da educação básica, acadêmicos e profissionais da área da educação e das ciências sociais, entusiastas e ativistas da cultura livre e digital, políticos, juristas e gestores públicos […]”.

Livros para download: Pontos de cultura e lan houses

Baixe grátis o livro Pontos de cultura e lan houses: Estruturas para inovação na base da pirâmide social, organizado por Joana Varin Ferraz e Ronaldo Lemos

Produzido a partir dos debates e articulações decorrentes do projeto “Tecnologia, Democracia e Desigualdade Social: Melhores Práticas e Políticas Públicas”, financiado pela Agência Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP e desenvolvido pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (CTS/FGV), o livro reúne artigos de pesquisadores e profissionais de diversas áreas para pensar a importância de promover acesso à cultura digital. Dessa forma, a publicação destaca o importante papel que os pontos de cultura e as lan houses dispersas pelos mais diversos cantos do país, com especial capilaridade nas periferias urbanas, acabam tendo na promoção do acesso à cultura digital, colocando-se como espaços com maior protagonismo dos que os telecentros. A publicação problematiza ainda o desafio que se coloca à legalização das lan houses, ainda desamparadas pela legislação brasileira, e a necessidade de aproximá-las das propostas de pontos de cultura digital e outras políticas públicas.

O texto foi extraído do portal do CENPEC - Centro de Estudos e Pesquisas, 
que também disponibiliza a obra.

Vídeos USP: A escravidão que unificou Brasil, Cuba e Estados Unidos

Pesquisa que analisa as relações comerciais que mantiveram o tráfico de escravizados entre Brasil e Estados Unidos, mesmo após a proibição legal no século XIX, ganha série de vídeos no Youtube da USP.

Nessa semana, a página Ciência USP (no Facebook) publicou o vídeo sobre a tese defendida pelo professor e historiador Tâmis Peixoto Parron em 2015, que analisou como Brasil, Estados Unidos e Cuba se vincularam comercialmente e politicamente para manter o trabalho escravo de africanos em seus países, no século XIX. A tese recebeu o prêmio de melhor tese das ciências humanas no ano de 2016 da USP.

Parron analisou uma aparente contradição do século XIX: como foi possível a escravidão nas Américas chegar ao auge ao mesmo tempo em que a ideia de liberdade se espalhava pelo mundo, fruto, dentre outros, dos preceitos oriundos da Revolução Francesa e suas repercussões sobre o Ocidente. O período analisado vai de 1787 a 1846, portanto, após as leis abolicionistas que proibiam o comércio de escravizados. Segundo o autor da tese, sua pesquisa analisou como políticos, fazendeiros e empresários dos Estados Unidos, da monarquia espanhola e do Império do Brasil transformaram a escravidão negra em uma poderosa instituição internacional do século XIX. Segundo ele, o triunfo dos escravistas sobre os não escravistas durante boa parte do século XIX nasceu da combinação imprevista de pactos políticos nacionais e conjunturas econômicas globais. Para o orientador da pesquisa, prof. Rafael Marquese, a escravidão foi uma instituição social total, que permeava o conjunto da vida no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos — principalmente nos estados do sul. As classes políticas escravistas eram muito poderosas nesses países. Após a proibição do comércio de escravos, em 1831, chegaram ao Brasil mais de 700 mil escravos africanos em 20 anos. Estima-se que 60% dos navios negreiros que chegaram ao Brasil saíram de estaleiros norte-americanos. Quase 100 mil escravizados que saíram dos Estados Unidos, mesmo após a proibição oficial, também chegaram a Cuba, em apenas cinco anos, entre 1815 e 1820  (assista ao vídeo).

Para realizar a pesquisa, Parron utilizou como material o documento histórico, de várias fontes, conforme explica. A documentação envolve documentos oficiais e oficiosos, publicações de jornais e revistas dos três países, além de outras fontes internacionais. O resultado da pesquisa mostra como a integração de Estados Unidos, Cuba e Brasil formou uma espécie de subsistema escravista dentro de um sistema liberal do nascente capitalismo. Antes de se oporem, ambos os sistemas se alimentavam, o que reforça a constatação já presente em outras pesquisas de que, de fato, a escravidão serviu à expansão e consolidação do sistema capitalista. Para o autor, não existe liberdade política de se expressar e liberdade econômica de obter mercadorias sem alguma forma de coerção em algum espaço do mundo que esteja direta ou indiretamente ligado ao lugar onde se exerce a liberdade. Como exemplo, ele cita que para um camponês alemão ou um operário inglês poder comer mais, em alguma outra parte do mundo alguém tinha que trabalhar mais para produzir o que seria consumido.

Na Biblioteca Digital da USP é possível consultar os dados sobre a pesquisa, incluindo o arquivo da tese. Todavia, a USP disponibilizou em seu canal no Youtube Ciência USP uma série de quatro vídeos que abordam as temáticas tratadas na pesquisa.

No primeiro, há um resumo da tese “A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846”, que mostra que esses países usaram laços comerciais para sustentar a política escravocrata, apesar de o século XIX ser marcado pela aspiração à liberdade.

No segundo vídeo, é tratado sobre a chamada “crise do Missouri”: a divergência entre escravocratas e abolicionistas levou os Estados Unidos à Guerra da Secessão. A crise do Missouri, sobre se a região seria ou não escravocrata, foi um dos antecedentes da guerra.

No terceiro vídeo, para além da crise do Missouri, é mostrado como outros episódios políticos nos EUA tiveram implicações para outros espaços de atuação de seus protagonistas. Entre eles, a chamada crise de nulificação, na qual o estado da Carolina do Sul argumentou que teria direito de anular decisões federais.

O último vídeo da série comenta sobre a forma de fazer pesquisa na tradição historiográfica chamada de “História total”, uma análise que busca cruzar as fronteiras do político, do econômico e do social para fazer uma análise totalizante, conjugando esses campos.

O trabalho e os vídeos são importantes no atual contexto brasileiro. De um lado, porque serve para resgatar a importância da História enquanto conteúdo e enquanto ferramenta de pesquisa que permite não apenas compreender o passado, mas também combater os discursos ideológicos que constantemente relativizam ou naturalizam questões histórico-sociais complexas, negando o próprio passado das nossas formações culturais. Entre essas questões, o reconhecimento da escravidão como componente e indutor paradoxal do sistema capitalista; o reconhecimento das repercussões culturais e sócio-econômicas para compreender as relações étnico-raciais do Brasil atual e, ainda, a importância de fornecer respostas aos ataques políticos e ideológicos das proposições que têm tentado extirpar o acesso ao conhecimento históricos dos currículos escolares do país.

 

 

Livro para download: Obras escolhidas de Walter Benjamin

Baixe grátis o livro Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política, de Walter Benjamin.

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Walter Benjamin (1892-1940) foi um dos maiores intelectuais do século XX. Representante da Teoria Crítica e da Escola de Frankfurt, foi um brilhante crítico literário e ensaísta, além e tradutor e filósofo. Em meio a efervescência cultural do seu tempo, foi diretamente influenciado por e exerceu influência sobre outros grandes nomes do início do século XX.

Seu legado, que só se tornou grandemente reconhecido após sua morte, trata principalmente sobre as representações artísticas, culturais e estéticas de seu tempo. Seu tempo, inclusive, marcado por grandes transformações técnicas na sociedade, dos meios de transporte aos meios de comunicação de massa — temática que ocupou o seu pensamento, bem como o pensamento de outros intelectuais da época, sobre as repercussões das transformações técnicas no seio da vida social. Sob influência do idealismo alemão e do materialismo dialético, Benjamin trafegou por essas diferentes vertentes, aproximando-as. Quando o regime nazista ganhou força, Walter Benjamin (assim como outros intelectuais da Escola de Frankfurt), judeu, teve que fugir da Alemanha. Morreu em 1940 enquanto tentava fugir do regime.

Nessa coletânea da Editora Brasiliense, os organizadores pinçam da vasta obra de Benjamin textos que contribuem ainda hoje para pensar sobre certos aspectos da cultura, dos brinquedos, da questão da reprodutividade das obras artísticas contidas no célebre texto “A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica”, entre outros.

Acesse o livro na íntegra.

Livro para download: As Tecnologias da Inteligência

Baixe grátis o livro As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática, de Pierre Lévy.

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Pierre Lévy é um filósofo judeu que se tornou especialista na teoria da inteligência coletiva e precursor da Cibercultura, sendo um dos primeiros a discutir temas como a Wikipédia. No seu Primeiro livro, “As Tecnologias da Inteligência” lançado em 1992, Lévy disserta sobre diversos conceitos, desde o surgimento de um novo formato textual, o Hipertexto, discutindo sua definição e os modos como é empregado, além do impacto social que o computador e suas tecnologias inteligentes causaram na sociedade, até assuntos mais complexos como a Ecologia Cognitiva e o Coletivo Inteligente.

Na primeira parte do livro As Tecnologias da Inteligência, Pierre Lévy explica que na comunicação a informação se precisa através do contexto e do sentido. Eles se interagem, tendo como preceito que o contexto é construído a partir do sentido e o sentido emerge a partir do contexto. Através deles que temos “(…) lances decisivos,… no jogo de interpretação e da construção de realidade”. (LÉVY, 1992). O método de comunicação que busca analisar, então, é o hipertextual. Começa relatando que a mente humana não segue um sentido linear de cognição, quando uma informação lhe é atribuída. Explica no trecho: “Quando ouço uma palavra, isto ativa imediatamente em minha mente uma rede de outras palavras, de conceitos, de modelos, mas também de imagens, sons, (…). Mas apenas os nós selecionados pelo contexto serão ativados com força suficiente em nossa consciência.” (PIERRE LÉVY, 1992, p. 23).

O leme que dá rota a esse fluxo cognitivo, então, é o contexto que “designa portanto a configuração de ativação de uma grande rede semântica” (LÉVY,1992). A essa grande rede semântica, o autor chamou de hipertexto. Para classificá-lo melhor, designa seis princípios básicos e abstratos:
– Principio de heterogeneidade: O modelo hipertextual está em constante mudança de construção e resignificação.
– Principio de heterogeneidade: Os nós e conexões da rede hipertextual serão heterogêneos, ou seja, poderão assumir diversas formas, como imagens, sons, palavras, modelos, etc.
– Principio de multiplicidade e de encaixe das escalas: Uma construção textual será ligada a uma rede de outros textos de modo fractal, ou seja, em progressão geométrica.
– Principio de exterioridade: Os caminhos escolhidos em um hipertexto são de origem externa ao texto, ou seja, vem de seu usuário.
– Principio de tipologia: Os meios compostos por hipertextos interligados são similares e vizinhos, ou seja, tem de ser compatíveis. Por exemplo, um texto de um livro não é comumente ligado a um texto de internet.
– Principio da modalidade dos centros: A rede hipertextual não possui centros, cada texto, cada som, cada imagem que estão interligados possui um centro de significância próprio.

[…]

A segunda parte do livro se propõe a fazer uma descrição geral das técnicas contemporâneas de comunicação e processamento de informação por computador. Contudo primeiro faz um estudo sobre algumas características cognitivas coletivas inerentes a sociedade humana.

Lévy diz que existiam, antes da era da informática, dois tipos de sociedade, uma mais arcaica que se estruturava a partir da Oralidade primaria, e outra mais moderna baseada na oralidade secundária. Oralidade primária seria a que remete ao papel da palavra falada antes do advento da escrita, “(…) a palavra tem como função básica a gestão da memória social, e não apenas a livre expressão das pessoas ou a comunicação prática cotidiana” (LÉVY,1992). Nessa sociedade a inteligência ou sabedoria estaria particularmente relacionada com a memória sobre o conhecimento que era passado de forma oral através de uma relação mais íntima entre indivíduos na construção de uma tradição. A forma de armazenamento dessas informações ou conhecimentos, como já dito, é a memória, por isso é preciso entender um pouco de seu funcionamento, para isso Lévy opta por uma analise a partir dos preceitos da psicologia cognitiva.

Obviamente nossa memória funciona de forma muito diferente a de um equipamento de armazenamento digital, que por vezes traz a recuperação fiel das informações guardadas. Nossa mente guarda informações através de dois veículos:
A memória de curto prazo que está relacionada com a atenção do ouvinte, que tentará reter uma informação durante um curto espaço de tempo para sua rápida utilização. Um recurso usado para o desenvolvimento dela é a constante repetição de uma ação.
A memória de longo prazo, essa mais complexa que a primeira, que funciona com o armazenamento de informações em uma única e imensa rede associativa que deverá contê-la durante um grande período de tempo.

O autor fala que, as sociedades orais, desenvolveram um método de conseguir garantir a eficiência da memória de longo prazo. Teoricamente falando Lévy chama esse método, ou estratégia, de Elaboração. Ela permitiria que a informação fosse condensada e associada a uma rede com grande numero de conexões, partindo para uma forma de compreensão através da representação.

[…]

 

Nova oralidade da rede digital

Como vimos, com o computador pessoal, a informática teve o suporte para se tornar uma cultura de massa. Essa cultura presa pela digitalização, ou seja, transformação de informação em dados a partir da codificação em sinais binários que serão armazenados, reconhecidos pelo equipamento e mostrados na tela de forma inteligível. O autor diz que “(…) a digitalização conecta no centro de um mesmo tecido eletrônico o cinema, o radio, a televisão, o jornalismo, a edição, a musica, as telecomunicações e a informática.” (LÉVY, 1992).

É importante percebemos também que através da digitalização e da rede, a oralidade escrita perde muitas de suas deficiências a pouco apresentadas, a codificação digital liberta o material de seus problemas de composição, de organização, apresentação e acesso. Essa nova oralidade se caracteriza muito mais pelo hipertextual, pela conexão de mídias e de pessoas de uma forma diferente, porém análoga, a da oralidade primaria, mas agora através da utilização da máquina como veículo de comunicação. Outra característica importante dessa oralidade digital é a capacidade que tem de uma informação escrita, imagética ou sonora ser passível de decomposição, recomposição, comentário, ordenação entre outras interferências de modulação.

[…]

Por fim, a outra característica presente na oralidade digital é a capacidade de simulação. Segundo o autor “Um modelo digital não é lido ou interpretado como um texto clássico, ele geralmente é explorado de forma interativa” (LÉVY, 1992). O conhecimento por simulação não se assemelha ao teórico nem ao pratico, ele cria um ambiente que simula a atividade intelectual antes da exposição racional, ou seja, o reflexo mental, a imaginação etc.

Acesse o livro na íntegra.


Esse post foi organizado a partir de excertos do texto de Gabriel Ribeiro publicado na Revista Universitária do Audiovisual, da UFSCar, em setembro de 2010.

Livro para download: Cinema, vídeo, Godard

Baixe grátis o livro Cinema, vídeo, Godard, de Philippe Dubois

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Jean-Luc Godard é, evidentemente, um dos maiores nomes da história do cinema. Nascido em Paris, em 1930, foi um dos principais nomes do Nouvelle Vague, um movimento artístico do cinema francês que rompeu com os modelos e padrões de se fazer cinema até então. Desde a imposição do cinema de estúdio, até a fixidez das câmeras, as narrativas lineares (e quase previsíveis) e a moralidade das produções cinematográficas, tudo isso o Nouvelle Vague veio contestar. Incluiu no novo jeito de fazer cinema a montagem inesperada de diálogos , o foco na personalidade dos personagens (e não nas cenas em si mesmo) e nas situações banais e cotidianas, e incluía nas produções elementos do pop art e do teatro épico, com a incorporação de textos de Marx a Balzac.

Como expoente desse movimento, a partir do final da década de 1950, Godard fez seu cinema de vanguarda explorando os temas polêmicos, os dilemas e as perplexidades do século XX. “Seu primeiro longa metragem, “Acossado” (1959), foi ponto de referência na cinematografia francesa, com um relato anti-heróico que rompia com muitas convenções. Audacioso, o cineasta adotou inovações narrativas e filmou com a câmera na mão, rompendo regras até então invioláveis” [1]. A magnitude de Godard para o cinema expressa-se nos diversos prêmios que recebeu ao longo da carreira, incluindo os prêmios honorários pela importância do conjunto de sua obra para o cinema internacional, incluindo dois prêmios César (o Oscar da Europa), um Leão de Ouro Honorário, além do Oscar Honorário, em 2010.

No livro Cinema, vídeo, Godard, o autor Philippe Dubois dedica toda a terceira e última parte da obra a um exame aprofundado da obra e do legado do cineasta francês que, “como nenhum outro, problematizou  com tanta insistência, profundidade e diversidade a mutação das imagens“. [2]. O livro, formado por nove ensaios, por sua vez, trata justamente da questão das imagens para o vídeo e, em especial, para o cinema. Parte, no capítulo inicial, da discussão sobre a teoria das imagens e sua relação com o vídeo, indagando se u vídeo pode ser considerado como um corpo estético específico, uma arte em si mesma, com linguagem própria.

Philippe Dubois é professor no Departamento de Cinema e Audiovisual da Universidade de Paris 3 — Sorbonne Nouvelle — onde leciona teoria das formas visuais. É pesquisador do Instituto Universitário da França (IUF). Há várias décadas pesquisa e publica artigos e livros sobre imagem, fotografia, cinema, vídeo e pós-cinema. Uma de suas áreas de especialidade é a análise fílmica, um porte teórico-metodológico imprescindível para os críticos de cinema. Dubois também já foi crítico e redator da Revue Belge du Cinéma e colaborador da Cinemateca Real da Bélgica. Já esteve no Brasil várias vezes, participando inclusive de uma Aula Magna do curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina, cujo vídeo está disponível no YouTube.

Conforme descrito na apresentação do livro, ressalta que Dubois é um dos poucos pensadores que vêm desenvolvendo uma “reflexão concentrada sobre as atuais mutações do cinema, a perda de sua hegemonia sore a criação audiovisual, a emergência ruidosa do vídeo, o desafio imposto pela televisão e o panorama impreciso que tudo isso projeta num futuro próximo”. Podemos acrescentar a essa panorama a “magia das telas”, com a emergência dos dispositivos digitais e móveis e com a incorporação definitiva de câmeras em nosso cotidiano (vale lembrar que quando o livro foi lançado, ainda não havia YouTube, muito menos os fenômenos das transmissões ao vivo nas redes sociais, feitas com aparelhos celulares). A propósito, o próprio livro foi organizado a partir de um conjunto de ensaios escritos ainda em períodos anteriores nos quais a internet ainda não estava tão presente no cotidiano das pessoas. Todavia, Dubois não havia deixado escapar as nuances dessa mudança emergente.

As obras eletrônicas podem existir [..] associadas a outras modalidades artísticas, a outros meios, a outros materiais, a outras formas de espetáculo. Muitas das experiências videográficas são mesmo fundamentalmente efêmeras, no sentido de que acontecem ao vivo apenas num tempo e lugar específicos e não podem ser resgatadas a não ser sob a forma de documentação (quando existente). Como consequência dessa dissolução do vídeo em todos os ambientes, os profissionais que o praticam, bem como os públicos para os quais ele se dirige, foram se tornando cada vez mais heterogêneos, sem qualquer referência padronizada, perfazendo hábitos culturais em expansão, circuitos de exibição efêmeros e experimentais, que resultam em verdadeiros quebra-cabeças para os fanáticos da especificidade.

O vídeo é o meio do caminho entre o cinema (em que as imagens estão em relação de dependência de um roteiro prévio, um plano de fundo) e o computador, que dispensa tudo isso. Nesse sentido, pensar o vídeo em relação ao cinema implica repensar o vídeo não mais como uma mera forma de registrar e narrar, mas como um pensamento, um modo de pensar.

Acesse o livro na íntegra.


Veja também (vídeos):

O cinema de exposição – Aula Magna com Dubois no curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2013.

Entrevista de Dubois, durante o curso de Análise Fílmica ministrado na Universidade Federal do Ceará em 2010.

História e cultura negra: aprendizagem com o Carnaval

Publicado em 25 fev. 2017. Atualização: 28 fev. 2017 às 18:30.

Onze sambas-enredo com temática da cultura negra e questões sócio-raciais

carnaval

Desfile da Unidos da Tijuca, em 2003, em homenagem aos escravizados que retornaram à África

Embora frequentemente confundido com uma festa originariamente negra, o Carnaval brasileiro apresenta características distintas de região para região e quase nunca as questões próprias do universo étnico-racial negro são temáticas principais das escolas de samba. As primeiras manifestações populares do carnaval brasileiro se originaram no entrudo, festa de rua de origem portuguesa, da qual os negros escravizados não podiam participar. Foi com as festas religiosas de rua, nas quais senhoras negras, vestidas de branco, entoavam cânticos, que se iniciou a participação de negros no carnaval de rua. Todavia, foi só na virada para o século XX, com a criação dos blocos dos subúrbios, que as populações negras se incorporaram em definitivo nas festas do carnaval.

Os blocos de carnaval deram origem às primeiras escolas de samba no Rio de Janeiro, na década de 1920. Por mais de três décadas, os enredos dessas escolas contavam apenas a história oficial do Brasil — sobretudo a partir do Estado Novo, no qual o governo Getúlio Vargas incentivava, financeiramente, as agremiações que exaltavam os elementos da história nacional oficial. Essa situação passa a mudar no final da década de 1950. Edson Farias, no livro O desfile e a cidade: o carnaval-espetáculo carioca, situa como marco dessa virada o ano de 1960, quando o Grupo Salgueiro inclui a chamada “temática negra” no Carnaval, com o enredo “Palmares”. Segundo o autor, “o aspecto temático dos enredos torna-se o ponto de partida; em lugar das celebrações dos vultos da história brasileira convencional, excitam o “povo” a narrar seus próprios heróis e episódios encobertos. Ou seja, a proposta é incentivar a cultura popular a expressar toda épica dos subalternos no país”.

A partir daí, novas temáticas foram incorporadas pelas escolas de samba, incluindo personagens e episódios da história africana e afro-brasileira.

Contudo, expressões características das culturas e religiões afro-brasileiras incluídas nas letras nem sempre tornam as temáticas dos sambas-enredo temáticas da cultura negra, ou das questões sociais da população negra. Em 1991, por exemplo, a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, campeã do carnaval carioca, cantou “Aieieu Mamãe Oxum / Yemanjá Mamãe Sereia / Salve as águas de Oxalá / Uma estrela me clareia”, mas a sua temática era a água. Ou seja, embora o trecho se relacione aos orixás ligados à água, o tema não era propriamente elementos da cultura afro-brasileira. Assim, desfaz-se a impressão de que os temas de enredo das escolas de samba sejam, frequentemente, ligados à cultura negra africana e afro-brasileira.

Uma pesquisa de Andréa Pessanha publicada na revista Urutágua, em 2006, mostrou que, entre 183 sambas-enredo analisados, apenas 25 centravam as temáticas em “temáticas negras”, sejam elas de eventos, personalidades e questões próprias da realidade social das populações negras. Todavia, muitas temáticas eram secundárias (por exemplo, a homenagens a personalidades negras como Grande Otelo e Dorival Caymmi, portanto, não ligadas necessariamente a uma “temática negra”). Ainda, dos 183 sambas-enredo analisados, 92 não faziam qualquer referência a essas temáticas, o que mostra o quanto o senso comum pode se confundir quando se relaciona as variáveis “samba-enredo” e “temáticas negras”.

A seguir, listamos 11 sambas-enredo, desde 1960, cujo cerne das temáticas eram, efetivamente, questões sociais e raciais da cultura e história africana e afro-brasileira. Com suas diferentes maneiras de ver tais questões, muitas vezes tributária de criatividade do carnavalesco e de extensa pesquisa histórica, esses sambas mostram que o carnaval pode ensinar, com fantasia e batucada, tão bem quanto o saber que circula nas academias.

 

#01 1960: Acadêmicos do Salgueiro – Quilombo dos Palmares

Considerado um tema revolucionário para a época, o samba de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho “contava com toda a poesia e cadência melódica a luta de Palmares” [1]. Com componentes vestidos de escravos, pela primeira vez o negro viria a ser o protagonista de sua própria história. O Quilombo dos Palmares desceu às ruas. E a história dos enredos de carnaval estariam modificados para sempre.

#02 1968: Unidos de Lucas – Sublime Pergaminho

O samba escrito por Zeca Melodia, Nilton Russo e Carlinhos Madrugada trouxe ao carnaval uma visão romantizada da Lei Áurea, o “sublime pergaminho”. O samba, que já foi tema de questão do ENEM, embora não encontre respaldo em estudos históricos recentes, trouxe uma síntese da escravidão do país, do aprisionamento de negros africanos em navios negreiros até as leis abolicionistas dos anos de 1870 e 1880, que culminaria com a abolição da escravatura. Apesar de romantizar o episódio do fim da escravidão brasileira, o samba ficou marcado por trazer ao Carnaval um tema tabu para a época.

 

#03 1971: Acadêmicos do Salgueiro – Festa para um rei negro

O samba de Zuzuca ficou eternizado como “pega no ganzê” (cantado no refrão) e mudou o jeito de fazer samba-enredo: a partir dali, as escolas passaram a ter uma maior preocupação com os refrões dos sambas-enredo. O enredo se reportava a um episódio desconhecido da história brasileira, a visita do Rei do Congo ao Brasil no século XVII para solicitar a Maurício de Nassau sua intervenção para a paz entre os chefes de tribos africanas, cujos ânimos estavam acirradas em função de disputas comerciais europeias. O samba exaltava o rei negro e todas as festas e honrarias organizadas em sua homenagem, durante sua estadia em Recife.

 

#04 1972: Portela – Ilu Ayê

O samba Ilu Ayê (Terra da Vida), composto por Cabana e Norival Reis, prestava uma homenagem ao Negro na Civilização Brasileira, sua coragem, bravura, alegria e arte. Sem se ater a um personagem ou evento específico, o enredo teve como objetivo resgatar em forma de metanarrativa a importância e a influência do negro na constituição do povo e da cultura brasileira.

#05 1978: Beija-Flor – A criação do mundo na tradição Nagô

Com enredo do mítico carnavalesco Joãosinho Trinta, o samba de Neguinho da Beija-Flor, Gilson Dr. e Mazinho conta, como o título sugere, a criação do mundo a partir da narrativa nagô. Olorum, senhor do infinito, com sua respiração transforma o ar em água, lama e pedra, mistura avermelhada que gera Exu, o primogênito, que ajuda a criar, com outras entidades, o mundo, a vida e o amor. Trata-se de um descolamento das visões hegemônicas sobre a criação do mundo e coloca a cosmologia africana nagô no mesmo patamar de outras visões de mundo. O enredo inspirou o filme O Samba da criação do mundo, drama brasileiro de 1979.

 

#06 1979: Acadêmicos do Cubango – Afoxé

A Acadêmicos do Cubango é uma das mais tradicionais agremiações de carnaval da Grande Rio, da cidade de Niterói, onde sagrou-se campeã em 1979 com um dos sambas antológicos do carnaval carioca: Afoxé, composto por Heraldo Faria e João Belém, reverencia os festejos lúdico-religiosos originários de Lagos, antiga capital da Nigéria. Essa manifestação foi popularizada no Brasil a partir de finais do século XIX, expandida para outras regiões tendo como referência a cidade de Salvador. “Os afoxés representam um dos traços de resistência das camadas populares da sociedade brasileira que, através da lapidação espontânea do caldo de cultura, preservam e a todos brindam com parte do vastíssimo legado gestado no continente também chamado de ‘Berço da Humanidade’” [2].

 

#07 1984: Unidos da Ponte – Oferendas

Uma festa religiosa, das religiões de matriz africana. O samba Oferendas, de autoria de Jorginho, levou ao carnaval a temática das oferendas entregues aos orixás, em uma homenagem (e uma aula cultural) à religiosidade brasileira que é originária das tradições africanas. A letra é carregada de elementos dessas religiões, citando os orixás e as respectivas oferendas entregues pelos devotos.

 

#08 1988: Unidos de Vila Isabel – Kizomba, festa da raça

Quando você estiver assistindo a uma transmissão de desfile de escola de samba e ficar confuso(a) se algum comentarista falar que a escola trouxe um samba forte para a avenida, tome como exemplo esse samba. Considerado um dos mais belos e mais poderosos sambas enredo de todos os tempos, Kizomba, festa da raça, de autoria de Rodolpho, Jonas e Luís Carlos da Vila, entrou para a história do carnaval carioca e, é claro, da escola Unidos de Vila Isabel, que chegou ao seu primeiro título naquele ano, surpreendendo o público e desbancando as escolas favoritas. “Marcada por um ritmo forte e cadenciado, bem próximo da batida dos atabaques de terreiro, a música traz uma poesia igualmente intensa e transgressora, posto que busca desconstruir um dos mais caros mitos da nossa história oficial, aquele que atribui à generosidade da princesa Isabel todo o crédito pelo fim da escravidão no Brasil” [3]. O enredo traz fortes referências à resistência dos escravizados para a abolição da escravatura no país e atualiza a questão das relações étnico-raciais em um momento histórico em que todo o Ocidente se voltava para o regime de segregação racial na África do Sul (o apartheid), mostrando que a luta dos povos negros por igualdade ainda estava longe de ter fim: Vem a Lua de Luanda / Para iluminar a rua / Nossa sede é nossa sede / de que o “apartheid” se destrua. É um dos sambas enredo mais regravados por outros artistas.

 

#09 1988: Estação Primeira de Mangueira – Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão

No ano em que o país celebrava o centenário da abolição da escravatura, a Mangueira ergueu a voz contra o ideário predominantemente romantizado da promulgação da Lei Áurea e questionou se, de fato, a escravidão havia chegado ao fim. Composto por Alvinho, Hélio Turco e Jurandir e interpretado pela voz inconfundível de Jamelão, o samba entrou para a galeria dos maiores sambas já produzidos no país. O mote do enredo, no cerne, são as relações étnico-raciais, uma luta do bem contra o mal que sintetiza-se o derramamento de sangue e no preconceito racial contra as populações negras, ainda que os escravizados negros tenham ajudado a construir (e na maioria dos casos foram eles mesmos, por seu trabalho, que construíram) as riquezas do país. A história oficial da abolição da escravatura e suas consequências, até então romantizada no próprio nome da lei e numa imagem benevolente da Princesa Isabel, é enfrentada em um dos versos mais poderosos e geniais da música popular brasileira: “Pergunte ao criador / Quem pintou esta aquarela / Livre do açoite na senzala / Preso na miséria da favela”. Nada mais enfático para questionar o pós-abolição, enredo central da escola: “1888 Lei Áurea. 1988, Cem anos de liberdade ou de discriminação? Ontem negro escravo, hoje gari, cozinheira. Só alguns deram certo” [4].

 

#10 1988: Beija-Flor – Sou Negro, do Egito à liberdade

Em 1988, a Beija-Flor também levou para a avenida a temática da escravidão. De fato, era um ano emblemático não apenas pelos cem anos da Lei Áurea, mas pelo amplo debate nacional de cunho progressista, de reconhecimento da própria história e de luta por direitos sociais que vinham no bojo de movimentos políticos, como a aprovação da Constituição Federal e da amplitude da noção de cidadania. O samba, composto por Aloísio Santos, Cláudio Inspiração, Ivancué e Marcelo Guimarães, reconhecia os feitos dos negros, mas também a realidade do negro no país. E conclui que, se a liberdade já havia raiado, a igualdade não.

 

#11 2003: Unidos da Tijuca – Agudás, os que levaram a África no coração e trouxeram para o coração da África o Brasil

O enredo da Unidos da Tijuca, em 2003, contou a história da escravidão de um outro olhar: os negros escravizados brasileiros que voltaram à África. O samba composto por Rono Maia, Jorge Melodia e Alexandre Alegria conta que “Obatalá / Mandou chamar seus filhos / A luz de Orunmila / Conduz o Ifá, destino / Sou negro e venci tantas correntes / A glória de quebrar todos grilhões / Na volta das espumas flutuantes / Mãe-África receba seus leões”. O enredo foi inspirado no livro Agudás, os “brasileiros” do Benin, de Milton Guran. Com essa temática, “o carnavalesco Milton Cunha conta à sua maneira a história dos ex-escravos que saíram do Brasil para retornar à África, nem sempre para os mesmo lugares de onde teriam saído, e que acabaram se concentrando no Benin, antigo Daomé” [5]. O enredo, do retorno de escravizados ao continente africano levando para lá coisas do Brasil, é uma espécie de redenção [6], emanada da dor e do sofrimento de ancestrais em comum.

Atualização

Neste artigo citamos apenas os sambas do carnaval carioca. Todavia, merece registro o título do carnaval de São Paulo em 2017 conquistado pela escola Acadêmicos do Tatuapé, que levou para a avenida o enredo Mãe-África conta a sua história: Do berço sagrado da humanidade ao abençoado menino da terra do ouro. “Para se diferenciar de todas as outras escolas que já falaram da África ao longo dos anos, a Tatuapé se apoiou na filosofia do Ubuntu, que prega compaixão e amor. Suas fantasias representavam os diferentes grandes reinos da história do continente e seus países atuais, além das religiões africanas, como o candomblé, o cristianismo e o islamismo” [7].

 


Fontes:
Galeria do Samba | Academia do Samba | Portela Web | Salgueiro | Samba de Terça |