Arquivos do Blog

Livro para download: Obras escolhidas de Walter Benjamin

Baixe grátis o livro Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política, de Walter Benjamin.

11

Walter Benjamin (1892-1940) foi um dos maiores intelectuais do século XX. Representante da Teoria Crítica e da Escola de Frankfurt, foi um brilhante crítico literário e ensaísta, além e tradutor e filósofo. Em meio a efervescência cultural do seu tempo, foi diretamente influenciado por e exerceu influência sobre outros grandes nomes do início do século XX.

Seu legado, que só se tornou grandemente reconhecido após sua morte, trata principalmente sobre as representações artísticas, culturais e estéticas de seu tempo. Seu tempo, inclusive, marcado por grandes transformações técnicas na sociedade, dos meios de transporte aos meios de comunicação de massa — temática que ocupou o seu pensamento, bem como o pensamento de outros intelectuais da época, sobre as repercussões das transformações técnicas no seio da vida social. Sob influência do idealismo alemão e do materialismo dialético, Benjamin trafegou por essas diferentes vertentes, aproximando-as. Quando o regime nazista ganhou força, Walter Benjamin (assim como outros intelectuais da Escola de Frankfurt), judeu, teve que fugir da Alemanha. Morreu em 1940 enquanto tentava fugir do regime.

Nessa coletânea da Editora Brasiliense, os organizadores pinçam da vasta obra de Benjamin textos que contribuem ainda hoje para pensar sobre certos aspectos da cultura, dos brinquedos, da questão da reprodutividade das obras artísticas contidas no célebre texto “A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica”, entre outros.

Acesse o livro na íntegra.

História e cultura negra: aprendizagem com o Carnaval

Publicado em 25 fev. 2017. Atualização: 28 fev. 2017 às 18:30.

Onze sambas-enredo com temática da cultura negra e questões sócio-raciais

carnaval

Desfile da Unidos da Tijuca, em 2003, em homenagem aos escravizados que retornaram à África

Embora frequentemente confundido com uma festa originariamente negra, o Carnaval brasileiro apresenta características distintas de região para região e quase nunca as questões próprias do universo étnico-racial negro são temáticas principais das escolas de samba. As primeiras manifestações populares do carnaval brasileiro se originaram no entrudo, festa de rua de origem portuguesa, da qual os negros escravizados não podiam participar. Foi com as festas religiosas de rua, nas quais senhoras negras, vestidas de branco, entoavam cânticos, que se iniciou a participação de negros no carnaval de rua. Todavia, foi só na virada para o século XX, com a criação dos blocos dos subúrbios, que as populações negras se incorporaram em definitivo nas festas do carnaval.

Os blocos de carnaval deram origem às primeiras escolas de samba no Rio de Janeiro, na década de 1920. Por mais de três décadas, os enredos dessas escolas contavam apenas a história oficial do Brasil — sobretudo a partir do Estado Novo, no qual o governo Getúlio Vargas incentivava, financeiramente, as agremiações que exaltavam os elementos da história nacional oficial. Essa situação passa a mudar no final da década de 1950. Edson Farias, no livro O desfile e a cidade: o carnaval-espetáculo carioca, situa como marco dessa virada o ano de 1960, quando o Grupo Salgueiro inclui a chamada “temática negra” no Carnaval, com o enredo “Palmares”. Segundo o autor, “o aspecto temático dos enredos torna-se o ponto de partida; em lugar das celebrações dos vultos da história brasileira convencional, excitam o “povo” a narrar seus próprios heróis e episódios encobertos. Ou seja, a proposta é incentivar a cultura popular a expressar toda épica dos subalternos no país”.

A partir daí, novas temáticas foram incorporadas pelas escolas de samba, incluindo personagens e episódios da história africana e afro-brasileira.

Contudo, expressões características das culturas e religiões afro-brasileiras incluídas nas letras nem sempre tornam as temáticas dos sambas-enredo temáticas da cultura negra, ou das questões sociais da população negra. Em 1991, por exemplo, a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, campeã do carnaval carioca, cantou “Aieieu Mamãe Oxum / Yemanjá Mamãe Sereia / Salve as águas de Oxalá / Uma estrela me clareia”, mas a sua temática era a água. Ou seja, embora o trecho se relacione aos orixás ligados à água, o tema não era propriamente elementos da cultura afro-brasileira. Assim, desfaz-se a impressão de que os temas de enredo das escolas de samba sejam, frequentemente, ligados à cultura negra africana e afro-brasileira.

Uma pesquisa de Andréa Pessanha publicada na revista Urutágua, em 2006, mostrou que, entre 183 sambas-enredo analisados, apenas 25 centravam as temáticas em “temáticas negras”, sejam elas de eventos, personalidades e questões próprias da realidade social das populações negras. Todavia, muitas temáticas eram secundárias (por exemplo, a homenagens a personalidades negras como Grande Otelo e Dorival Caymmi, portanto, não ligadas necessariamente a uma “temática negra”). Ainda, dos 183 sambas-enredo analisados, 92 não faziam qualquer referência a essas temáticas, o que mostra o quanto o senso comum pode se confundir quando se relaciona as variáveis “samba-enredo” e “temáticas negras”.

A seguir, listamos 11 sambas-enredo, desde 1960, cujo cerne das temáticas eram, efetivamente, questões sociais e raciais da cultura e história africana e afro-brasileira. Com suas diferentes maneiras de ver tais questões, muitas vezes tributária de criatividade do carnavalesco e de extensa pesquisa histórica, esses sambas mostram que o carnaval pode ensinar, com fantasia e batucada, tão bem quanto o saber que circula nas academias.

 

#01 1960: Acadêmicos do Salgueiro – Quilombo dos Palmares

Considerado um tema revolucionário para a época, o samba de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho “contava com toda a poesia e cadência melódica a luta de Palmares” [1]. Com componentes vestidos de escravos, pela primeira vez o negro viria a ser o protagonista de sua própria história. O Quilombo dos Palmares desceu às ruas. E a história dos enredos de carnaval estariam modificados para sempre.

#02 1968: Unidos de Lucas – Sublime Pergaminho

O samba escrito por Zeca Melodia, Nilton Russo e Carlinhos Madrugada trouxe ao carnaval uma visão romantizada da Lei Áurea, o “sublime pergaminho”. O samba, que já foi tema de questão do ENEM, embora não encontre respaldo em estudos históricos recentes, trouxe uma síntese da escravidão do país, do aprisionamento de negros africanos em navios negreiros até as leis abolicionistas dos anos de 1870 e 1880, que culminaria com a abolição da escravatura. Apesar de romantizar o episódio do fim da escravidão brasileira, o samba ficou marcado por trazer ao Carnaval um tema tabu para a época.

 

#03 1971: Acadêmicos do Salgueiro – Festa para um rei negro

O samba de Zuzuca ficou eternizado como “pega no ganzê” (cantado no refrão) e mudou o jeito de fazer samba-enredo: a partir dali, as escolas passaram a ter uma maior preocupação com os refrões dos sambas-enredo. O enredo se reportava a um episódio desconhecido da história brasileira, a visita do Rei do Congo ao Brasil no século XVII para solicitar a Maurício de Nassau sua intervenção para a paz entre os chefes de tribos africanas, cujos ânimos estavam acirradas em função de disputas comerciais europeias. O samba exaltava o rei negro e todas as festas e honrarias organizadas em sua homenagem, durante sua estadia em Recife.

 

#04 1972: Portela – Ilu Ayê

O samba Ilu Ayê (Terra da Vida), composto por Cabana e Norival Reis, prestava uma homenagem ao Negro na Civilização Brasileira, sua coragem, bravura, alegria e arte. Sem se ater a um personagem ou evento específico, o enredo teve como objetivo resgatar em forma de metanarrativa a importância e a influência do negro na constituição do povo e da cultura brasileira.

#05 1978: Beija-Flor – A criação do mundo na tradição Nagô

Com enredo do mítico carnavalesco Joãosinho Trinta, o samba de Neguinho da Beija-Flor, Gilson Dr. e Mazinho conta, como o título sugere, a criação do mundo a partir da narrativa nagô. Olorum, senhor do infinito, com sua respiração transforma o ar em água, lama e pedra, mistura avermelhada que gera Exu, o primogênito, que ajuda a criar, com outras entidades, o mundo, a vida e o amor. Trata-se de um descolamento das visões hegemônicas sobre a criação do mundo e coloca a cosmologia africana nagô no mesmo patamar de outras visões de mundo. O enredo inspirou o filme O Samba da criação do mundo, drama brasileiro de 1979.

 

#06 1979: Acadêmicos do Cubango – Afoxé

A Acadêmicos do Cubango é uma das mais tradicionais agremiações de carnaval da Grande Rio, da cidade de Niterói, onde sagrou-se campeã em 1979 com um dos sambas antológicos do carnaval carioca: Afoxé, composto por Heraldo Faria e João Belém, reverencia os festejos lúdico-religiosos originários de Lagos, antiga capital da Nigéria. Essa manifestação foi popularizada no Brasil a partir de finais do século XIX, expandida para outras regiões tendo como referência a cidade de Salvador. “Os afoxés representam um dos traços de resistência das camadas populares da sociedade brasileira que, através da lapidação espontânea do caldo de cultura, preservam e a todos brindam com parte do vastíssimo legado gestado no continente também chamado de ‘Berço da Humanidade’” [2].

 

#07 1984: Unidos da Ponte – Oferendas

Uma festa religiosa, das religiões de matriz africana. O samba Oferendas, de autoria de Jorginho, levou ao carnaval a temática das oferendas entregues aos orixás, em uma homenagem (e uma aula cultural) à religiosidade brasileira que é originária das tradições africanas. A letra é carregada de elementos dessas religiões, citando os orixás e as respectivas oferendas entregues pelos devotos.

 

#08 1988: Unidos de Vila Isabel – Kizomba, festa da raça

Quando você estiver assistindo a uma transmissão de desfile de escola de samba e ficar confuso(a) se algum comentarista falar que a escola trouxe um samba forte para a avenida, tome como exemplo esse samba. Considerado um dos mais belos e mais poderosos sambas enredo de todos os tempos, Kizomba, festa da raça, de autoria de Rodolpho, Jonas e Luís Carlos da Vila, entrou para a história do carnaval carioca e, é claro, da escola Unidos de Vila Isabel, que chegou ao seu primeiro título naquele ano, surpreendendo o público e desbancando as escolas favoritas. “Marcada por um ritmo forte e cadenciado, bem próximo da batida dos atabaques de terreiro, a música traz uma poesia igualmente intensa e transgressora, posto que busca desconstruir um dos mais caros mitos da nossa história oficial, aquele que atribui à generosidade da princesa Isabel todo o crédito pelo fim da escravidão no Brasil” [3]. O enredo traz fortes referências à resistência dos escravizados para a abolição da escravatura no país e atualiza a questão das relações étnico-raciais em um momento histórico em que todo o Ocidente se voltava para o regime de segregação racial na África do Sul (o apartheid), mostrando que a luta dos povos negros por igualdade ainda estava longe de ter fim: Vem a Lua de Luanda / Para iluminar a rua / Nossa sede é nossa sede / de que o “apartheid” se destrua. É um dos sambas enredo mais regravados por outros artistas.

 

#09 1988: Estação Primeira de Mangueira – Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão

No ano em que o país celebrava o centenário da abolição da escravatura, a Mangueira ergueu a voz contra o ideário predominantemente romantizado da promulgação da Lei Áurea e questionou se, de fato, a escravidão havia chegado ao fim. Composto por Alvinho, Hélio Turco e Jurandir e interpretado pela voz inconfundível de Jamelão, o samba entrou para a galeria dos maiores sambas já produzidos no país. O mote do enredo, no cerne, são as relações étnico-raciais, uma luta do bem contra o mal que sintetiza-se o derramamento de sangue e no preconceito racial contra as populações negras, ainda que os escravizados negros tenham ajudado a construir (e na maioria dos casos foram eles mesmos, por seu trabalho, que construíram) as riquezas do país. A história oficial da abolição da escravatura e suas consequências, até então romantizada no próprio nome da lei e numa imagem benevolente da Princesa Isabel, é enfrentada em um dos versos mais poderosos e geniais da música popular brasileira: “Pergunte ao criador / Quem pintou esta aquarela / Livre do açoite na senzala / Preso na miséria da favela”. Nada mais enfático para questionar o pós-abolição, enredo central da escola: “1888 Lei Áurea. 1988, Cem anos de liberdade ou de discriminação? Ontem negro escravo, hoje gari, cozinheira. Só alguns deram certo” [4].

 

#10 1988: Beija-Flor – Sou Negro, do Egito à liberdade

Em 1988, a Beija-Flor também levou para a avenida a temática da escravidão. De fato, era um ano emblemático não apenas pelos cem anos da Lei Áurea, mas pelo amplo debate nacional de cunho progressista, de reconhecimento da própria história e de luta por direitos sociais que vinham no bojo de movimentos políticos, como a aprovação da Constituição Federal e da amplitude da noção de cidadania. O samba, composto por Aloísio Santos, Cláudio Inspiração, Ivancué e Marcelo Guimarães, reconhecia os feitos dos negros, mas também a realidade do negro no país. E conclui que, se a liberdade já havia raiado, a igualdade não.

 

#11 2003: Unidos da Tijuca – Agudás, os que levaram a África no coração e trouxeram para o coração da África o Brasil

O enredo da Unidos da Tijuca, em 2003, contou a história da escravidão de um outro olhar: os negros escravizados brasileiros que voltaram à África. O samba composto por Rono Maia, Jorge Melodia e Alexandre Alegria conta que “Obatalá / Mandou chamar seus filhos / A luz de Orunmila / Conduz o Ifá, destino / Sou negro e venci tantas correntes / A glória de quebrar todos grilhões / Na volta das espumas flutuantes / Mãe-África receba seus leões”. O enredo foi inspirado no livro Agudás, os “brasileiros” do Benin, de Milton Guran. Com essa temática, “o carnavalesco Milton Cunha conta à sua maneira a história dos ex-escravos que saíram do Brasil para retornar à África, nem sempre para os mesmo lugares de onde teriam saído, e que acabaram se concentrando no Benin, antigo Daomé” [5]. O enredo, do retorno de escravizados ao continente africano levando para lá coisas do Brasil, é uma espécie de redenção [6], emanada da dor e do sofrimento de ancestrais em comum.

Atualização

Neste artigo citamos apenas os sambas do carnaval carioca. Todavia, merece registro o título do carnaval de São Paulo em 2017 conquistado pela escola Acadêmicos do Tatuapé, que levou para a avenida o enredo Mãe-África conta a sua história: Do berço sagrado da humanidade ao abençoado menino da terra do ouro. “Para se diferenciar de todas as outras escolas que já falaram da África ao longo dos anos, a Tatuapé se apoiou na filosofia do Ubuntu, que prega compaixão e amor. Suas fantasias representavam os diferentes grandes reinos da história do continente e seus países atuais, além das religiões africanas, como o candomblé, o cristianismo e o islamismo” [7].

 


Fontes:
Galeria do Samba | Academia do Samba | Portela Web | Salgueiro | Samba de Terça |

Sambas-enredo e educação: passagens históricas em sala de aula

Com personagens e passagens históricas em suas letras, sambas-enredo evoluem nas salas de aula

samba

Por Helena Cancela Cattani*

Quem descobriu o Brasil? Foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval? Como, se antes houve Colombo, Duarte e Vasco da Gama? E tem mais: o português “descobriu” ou conquistou? Quando, afinal, começa a História do Brasil? O que há de história na versão oficial?

O ensino dos eventos ocorridos por volta de 1500 fica muito mais instigante quando inclui esse tipo de questionamento. Além de aprender História, os alunos são levados a refletir sobre o próprio processo pelo qual ela é construída, em diferentes versões ainda hoje reproduzidas.

Melhor ainda quando essa discussão historiográfica aparece em linguagem popular, no embalo dos versos de sambas de carnaval:

Partiram caravelas de Lisboa,
Com o desejo de comercializar
As especiarias da Índia, e o ouro da África
Mas depois o rumo se modificou
Olhos no horizonte, um sinal surgiu
Em 22 de abril, quando ele avistou
Se encantou
(Imperatriz Leopoldinense, 2000)

 

Pois o tratado eu sei que existiu
Viajando foi às Índias
Vasco da Gama o navegador
(Foi quem comandou)
O acordo foi fechado
E novamente a Europa desfrutou
Então Cabral partiu, oficializou
Rezaram a missa como o rei mandou
(Acadêmicos do Salgueiro, 1995)

Mesma temática, diferentes formas de abordá-la. Enquanto o samba-enredo da Imperatriz enfatiza a visão mais tradicional do “Descobrimento”, o Salgueiro questiona algumas “coincidências” que cercam aquele período, como a assinatura do Tratado de Tordesilhas em 1494.

Sempre às voltas com assuntos históricos, os sambas de enredo funcionam como uma ferramenta didática diferenciada. Não foi à toa que, no final da década de 1920, as agremiações carnavalescas do Rio de Janeiro receberam o apropriado nome de escolas de samba. Embora haja controvérsia sobre o motivo original dessa designação, o fato é que essas “escolas” – hoje presentes não só no Rio, mas em outras capitais e até em municípios do interior – contam uma história em seus desfiles. É uma apresentação inédita e única, em que, por cerca de uma hora, apresentam suas versões carnavalizadas sobre fatos, eventos e personagens do passado – de figuras populares como Zumbi dos Palmares a soberanos como D. João VI, de revoluções marcantes, como a francesa, a temas mais particulares, como a história da cachaça. Por que não levar essas narrativas para dentro da sala de aula?

O samba geralmente provoca reações diferentes entre os alunos. Alguns, antes mesmo de entender a proposta, resistem por não gostarem do gênero musical. Outros se apressam a lembrar ao professor que os festejos de carnaval só acontecem em fevereiro, então não faz sentido ouvir sambas em outras épocas do ano. Superada esta ou aquela resistência inicial, o resultado é que a maioria das turmas que trabalham com esta proposta acaba por considerá-la muito positiva, e passa a interessar-se pelo tema após o início das atividades.

Até meados dos anos 1990, era obrigatório, nas escolas cariocas, abordar temáticas nacionais. E mesmo depois que a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) aboliu essa exigência, a maioria dos sambas continuou privilegiando a História do Brasil. É esta abundância de enredos que permite a análise e comparação entre versões e abordagens de um mesmo assunto.

Datas marcantes costumam inspirar desfiles comemorativos. Foi assim em 1988, no centenário da abolição da escravatura, quando a Unidos de Vila Isabel apresentou um desfile intitulado, Kizomba, a Festa da Raça, exaltando a luta negra. Seu samba cantava “Vem a Lua de Luanda/ Para iluminar a rua/ Nossa sede é nossa sede/ De que o apartheid se destrua”. Dois anos depois, estava oficialmente encerrado o regime segregacionista na África do Sul. Em 2007, a Porto da Pedra apresentou um enredo em homenagem àquele país, cujo samba (Preto e Branco a Cores) louvava o principal artífice político da conquista da igualdade racial: “Liberto permanece o pensamento/ Ele foi meu alento/ Quando o corpo foi prisão/ O nosso herói Mandela é”.

A alunos do primeiro ano do ensino médio [de uma escola] foi proposta uma análise comparativa dos dois sambas. O debate inicial centrou-se na questão de como era possível traçar semelhanças e diferenças entre as composições, que abordam assuntos semelhantes, mas com quase 20 anos de distância. Depois de uma exposição, feita pela professora, de elementos importantes para a compreensão dos desfiles, a turma elencou seus argumentos considerando não só as letras, mas o enredo e os elementos gráficos utilizados. Divididos em grupos, os alunos pesquisaram o contexto histórico em que esses sambas foram produzidos: o ocaso do apartheid, no fim da década de 1980, e a importância socioeconômica da África do Sul dos anos 2000. Os sambas permitem ainda o debate sobre as realidades dos dois países e suas transformações políticas e sociais ao longo do tempo, a fim de se obter uma melhor compreensão acerca da identidade étnica negra.

O exercício de criação de uma linha do tempo, aplicado a turmas de 7ª série do ensino fundamental, também pode contar com a ajuda de sambas-enredo. Alguns deles fazem verdadeiros passeios pela história universal. Um exemplo é o samba de 1998 da Unidos de Vila Isabel, “Lágrimas, Suor e Conquistas em um Mundo em Transformação”. O enredo, de autoria de Jorge Freitas, apresenta a história da civilização ocidental, da pré-história à Revolução Francesa. A partir das informações fornecidas pela letra, os alunos identificaram fatos e eventos, e observaram a coexistência destes através do tempo: “A luz de Roma se apaga”, “O clero, a bem da verdade, julgava o herege na Inquisição”, “O homem avança no velho mar”, “Da burguesia surge o renascer”, “Na França movimentos radicais deram ao mundo outra mentalidade”.

É importante incorporar manifestações relacionadas às comunidades dos alunos. Eles passam a observar questões ligadas a seu meio social, e assim desenvolvem maior interesse pelas atividades propostas. Alguns alunos, por iniciativa própria, podem trazer sambas que consideram relevantes ou que foram compostos pelas escolas às quais pertence o seu núcleo familiar.

O uso do samba não precisa ficar restrito ao ensino de História. Interações com outras áreas do conhecimento, como Geografia, Literatura e Artes Visuais, enriquecem o trabalho e aprofundam a compreensão dos alunos. No livro Para tudo não se acabar na quarta-feira: a linguagem do samba-enredo”, o pesquisador Júlio César Farias realiza um estudo linguístico de sambas-enredo e propõe sua utilização no ensino de Língua Portuguesa.

Farias lembra que a linguagem dessas composições se transformou ao longo do tempo. Na década de 1930, elas se constituíam de pequenos versos e incluíam partes improvisadas por repentistas. Durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), os sambas ficaram mais longos e incorporaram temas ufanistas, com expressões eruditas adaptadas de livros didáticos, reproduzindo o discurso oficial. A década de 1960 marcou a inserção de temas folclóricos e ligados à cultura negra, e entre os anos 70 e 80 houve a aceleração dos sambas, para atender a desfiles mais espetacularizados, tendo lugar no Sambódromo e com transmissão pela TV. É quando o pesquisador percebe a “diluição poética” dos sambas, em nome de rimas mais fáceis para conquistar o público.

Ainda assim, as letras mantêm grandes atrativos para os estudos históricos, a partir de elementos da epopeia literária: o tema é anunciado, feitos heroicos são exaltados, personagens e passagens históricas, mitificadas.

Aspectos visuais do desfile, como as fantasias e as alegorias, podem ser analisados pelo viés artístico e histórico. A escolha temática para o desfile e o meio onde se inserem as comunidades carnavalescas, assim como as diferentes formas de celebrações carnavalescas no Brasil, unem aspectos históricos e geográficos. Além disso, a construção das letras dos sambas observa particularidades de determinados meios sociais, no tempo e no espaço.

Se o carnaval criou escolas para ensinar samba, por que o samba não pode virar instrumento pedagógico? Como cantou a Acadêmicos de Santa Cruz em 2007, “No tic-tac das horas/ Nosso samba vira história”.

 

Saiba Mais – Bibliografia

FARIAS, Júlio César. O enredo de Escola de Samba. Rio de Janeiro: Litteris, 2007.
FARIAS, Júlio César. Para tudo não se acabar na quarta-feira: a linguagem do samba-enredo. Rio de Janeiro: Litteris, 2002.
PRASS, Luciana. Saberes musicais em uma bateria de Escola de Samba: uma etnografia entre os bambas da orgia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

Saiba Mais – Internet

http://www.galeriadosamba.com.br
http://liesa.globo.com/

* Historiadora e pesquisadora do carnaval do Rio Grande do Sul.
Esse texto foi publicado originalmente em 24 jan. 2011, 
na Revista de História.

Livro para download: Cultura e artes do pós-humano

Baixe grátis o livro Cultura e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura, de Lúcia Santaella

03

Uma mudança cultural significativa com e pelas mídias. Esse pode ser considerado o ponto de partida da análise que a pesquisadora brasileira Maria Lúcia Santaella Braga — uma das principais divulgadoras da cultura digital do tempo presente — faz nessa obra, lançada originalmente em 2003. A obra, por sua vez, é uma ampliação significativa (e um aprofundamento significativo de ideias) do livro “Cultura das Mídias”, de 1992. O exemplar reproduzido aqui é a 4ª edição da obra, de 2010. Uma das características das obras de Santaella, a propósito, é retomar em seus livros ideias lançadas em seus livros anteriores. Outra característica é que, mesmo com o passar do tempo, suas ideias permanecem atuais e, em alguns casos, até mesmo futuristas ou prospectivas. O conceito de pós-humano se encaixa nesse perfil.

A perspectiva do pós-humanismo foi elaborada na década de 1970 por Ihab Hassan, norte-americano de ascendência egípcia, para designar uma espécie de ódio do ser humano por si mesmo. Esquecido por algum termo, o neologismo voltou à tona nos escritos de intelectuais que estudam a arte, a cultura e a filosofia a partir da década de 1990, no bojo da emergência da cibernética e da hibridização entre humano e máquina. Embora esse fosse um tema recorrente das obras de ficção científica dos anos 80 (em que “Blade Runner” tornou-se clássico, mas em que talvez Robocop tenha sido a expressão mais popular, visto que não se passava em um futuro distante, mas numa Detroit decadente da época), tal hibridismo, longe de apenas mexer com a imaginação ficcional, está encrustada na própria cultura emergente via redes digitais. É nesta perspectiva que Santaella categoriza a passagem de uma cultura a outra: a cultura oral, a escrita, a cultura impressa, a cultura de massas, a cultura das mídias até a cultura digital. A emergência de uma forma de cultura não exclui a outra, mas, ao contrário, a incorpora, de modo que todas coexistem no tempo presente.

Embora Santaella reconheça que os meios de comunicação são meros canais de informação, a passagem de uma cultura a outra está pautada nessas tecnologias como portadoras ou como veículos que carregam os elementos dessas distintas formas de cultura: segundo a autora, os tipos de signos que por elas circulam, os tipos de mensagens que engendram e os
tipos de comunicação que são capazes não só de moldar o pensamento dos seres humanos, mas também de propiciar o surgimento de novos ambientes socioculturais. A convergência das mídias, podemos pensar, seria uma espécie de convergência cultural, sobretudo com a emergência das tecnologias digitais de informação e comunicação, na qual o computador é visto como a mídia das mídias. Decorre da centralidade dessa tecnologia a característica essencial que Santaella distingue como a passagem da cultura de massa (até então predominante) para a cibercultura.

Na perspectiva de Santaella, seu propósito com esse livro é contribuir com sugestões de respostas às questões que estão no centro da atenção daqueles que têm sido movidos pelo desejo da pesquisa sobre os temas do ciberespaço, cibercultura e ciberarte: o que está acontecendo à interface ser humano-máquina e o que isso está significando para as comunicações e a cultura do início do século XXI. Com essa obra, Santaella convida o leitor a repensar o humano no alvorecer do vir-a-ser tecnológico do mundo contemporâneo, a partir da história das novas tecnologias, da filosofia, da psicanálise, da comunicação e semiótica e, principalmente, da arte. Santaella reconhece que o título do livro (referindo-se ao pós-humano) é perturbador, pois pode sugerir que o humano já se foi, perdeu-se no golpe dos acontecimentos. “Insisto em mantê-lo, apesar desses perigos interpretativos, porque pretendo chamar a atenção pra a necessidade de se repensar o humano até o limite de sua essência molecular”, afirma a autora.

Livro para download: Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia

Baixe grátis o livro Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia, de Jesús Martín-Barbero

 

barbero

O espanhol radicado na Colômbia Jesús Martín-Barbero publicou essa obra originalmente em 1986, embora só na virada dos anos 2000 o livro tenha ganhado repercussão no Brasil, após a primeira edição brasileira em 1997, pela editora da UFRJ. Semiólogo e pesquisador da comunicação e da cultura, Martín-Barbero, nesse livro, coloca em xeque todo o debate então predominante sobre mídia e comunicação, em especial na América Latina. No debate vigente, ancorado na perspectiva da Escola de Frankfurt e seus representantes, como Adorno e Horkheimer, a mídia era vista como um instrumento de manipulação no interior da sociedade administrada. A ideia central do livro para confrontar o pensamento predominante de que a mídia, as produções culturais e as comunicações, no âmbito da indústria cultural, estariam sempre à serviço da alienação é a de que nem toda absorção do hegemônico pelo subalterno é sinal de submissão e nem toda recusa é sinal de resistência.

Com argumentos históricos e teóricos consistentes, o autor analisa a questão da comunicação a partir da América Latina em diferentes períodos históricos no século XX: um primeiro, dos anos 30 aos anos 50, e um segundo a partir da década de 1960, com o estímulo ao consumo e com os meios de comunicação desviados de sua função política para entenderem a interesses econômicos.

A passagem dos meios às mediações, na análise do autor, corresponde à passagem de uma análise na qual os dispositivos são simples meios para se realizar alienação num público passivo para um modelo de análise em que a hegemonia transforma de dentro o sentido do trabalho e da vida da comunidade. Não é possível, por isso, fazer uma apreciação das mensagens da mídia sem uma análise real do que acontece na recepção dessas mensagens, que nunca é simplesmente passiva e consumidora. Isso não quer dizer que a mensagem midiática não deva ser questionada quanto aos seus interesses originais, mas considerá-la apenas, sem levar em consideração às mediações (e as formas de recepção dessas mensagens) seria uma redução simplista do estudo da comunicação — o que comumente ocorre nas afirmações de que as mídias apenas manipulam e alienam. Assim, os pressupostos anunciados no livro abrem passagem para o fortalecimento dos chamados “estudos de recepção”, nos quais os contextos dos receptores e suas bagagens culturais ganham relevância para reelaboração das mensagens midiáticas: não que as mídias não manipulem, mas existe um espaço, talvez amplo, de mediações dessas mensagens.