Boatos na rede, educação e competência midiática

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A proliferação de boatos na rede é causa de atritos, de brigas em família e discussões sem fim que só ajudam a fortalecer as bolhas ideológicas, cujos muros são intransponíveis. O trabalho do educador midiático, nesse contexto, é como o trabalho de Sísifo, em que muitas pedras rolam do alto da montanha.

Por Rafael Cunha*

 


doleiro

Boato de 2014, criado com uma montagem a partir de uma imagem de um portal de notícias verdadeiro: tem gente que até hoje acredita

Nesta semana, o doleiro Alberto Youssef — uma das personalidades centrais da operação Lava Jato, em função da delação de outros envolvidos — trocou a carceragem pela prisão domiciliar. Dois anos atrás, ele havia sido morto, envenenado no fim de semana das eleições gerais, por suposto, antes que delatasse outros políticos poderosos. A notícia de agora é verdadeira e pode ser comprovada por qualquer agência de notícia. A de dois anos atrás, não, e era respaldada em uma montagem mais ou menos de baixa qualidade. A notícia de agora, verdadeira, quase não ganhou importância dos veículos de comunicação e possivelmente seja de desconhecimento de grande parte da opinião pública. A notícia de dois anos atrás, falsa, quase causou um furor nacional, embora tenha sido desmentida em poucas horas pelos médicos e pela família do suposto assassinado. Aliás, mesmo sendo desmentida, a crença no boato persistiu por mais um tempo em que o boato continuou circulando. Quiçá ainda hoje alguém mantenha o boato como notícia verdadeira. É aí que entra a complexidade para a atuação do educador midiático.

Tal como o destino de Sísifo, personagem da mitologia grega, astuto mortal que enganou a morte e que por isso foi condenado a passar a eternidade rolando uma pedra para o alto de uma montanha, até que ela rolasse de volta para a base, assim tem sido o trabalho exaustivo de quem trabalha com as mídias para o desenvolvimento de competências midiáticas. É possível que, no início da emergência da Web 2.0, não se vislumbrasse um trabalho tão complexo para a educação midiática do que o que se coloca nos dias atuais: a preocupação, há 10 anos ou pouco mais, ainda estava muito mais centrada no domínio técnico das ferramentas, para seu uso e produção de conteúdos e na analise crítica dos conteúdos midiáticos, na época, veiculado quase que exclusivamente pelos meios de comunicação de massa. Talvez, àquela altura, fosse demasiada preocupação o fato de que, como se coloca hoje, as próprias pessoas comuns estariam desenvolvendo conteúdos sem o mesmo cuidado (ou com as mesmas intenções perniciosos) necessário que, no fim das contas, servem muito mais à manipulação do que à informação; um desserviço à sociedade do que uma utilidade cultural. Há novos e complexos ingredientes quando se faz uma crítica à “mídia” nos dias atuais: nós, pessoas comuns, também somos “a mídia”.

A questão da competência midiática e da educação com, na e para as mídias é, sobretudo, um exercício de paciência. E um exercício sem fim, uma tarefa de Sísifo: por mais que se avance na discussão sobre a importância de verificar a fonte da informação antes de acreditar no que se vê nas redes sociais e, principalmente, antes de colocar novamente o conteúdo em circulação (o famoso “compartilhar”, que se tornou quase uma necessidade de sobrevivência), cotidianamente nos deparamos com uma infinidade de boatos, distorções, montagens grotescas ou qualquer outra coisa que, no limite, só tornam a rede um lugar mais estéril de se habitar por aqueles que, minimamente, se pretendem ser críticos.

Para o educador midiático, a desolação é ainda maior quando um ente próximo adere à onda do “primeiro publico, depois me importo com a veracidade do conteúdos”. Então, o estrago já está feito. Trata-se de uma imprudência sobre a fata de mensuração das consequências inconsequentes de um ato aparentemente ingênuo — compartilhar. Mas também se trata de um resultado nefasto do analfabetismo midiático que, parece, generalizado (por mais contundente que isso possa soar): ela não afeta apenas os indivíduos com baixa escolaridade ou instrução, mas é própria do universo de pessoas estudadas, de jornalistas a advogados — o exemplo emblemático mais recente é o boato disseminado pela advogada e professora da USP, Janaina Paschoal, de que a Rússia estaria se preparando para invadir o Brasil; nesse caso, nem uma pessoa supostamente intelectualizada, com formação em doutorado, está imune à histeria coletiva ou isenta de praticar a boataria, que pouco tem a ver com racionalidade. O observador crítico vai perceber que o mesmo boato (por exemplo, a invasão do Brasil) é utilizado por grupos antagônicos para diferentes fins: se acontecesse “Y”, a Rússia invadiria o país; ou em caso de ameaça de “Y” acontecer, a Rússia invadiria o país para defender “Z”. Em qualquer um dos casos, portanto, a Rússia teria invadido o Brasil. Mas até agora, é mais plausível que brasileiros invadam a Rússia, não para uma guerra, mas para assistir à próxima Copa do Mundo de futebol masculino.

Esse é apenas um ínfimo exemplo de boato corriqueiro nas redes sociais, para desespero dos educadores midiáticos. Costuma-se consagrar o Facebook e o WhatsApp como portadores da disseminação de boatos, por serem redes sociais popularmente utilizadas. Mas o YouTube é um oásis de pérolas da boataria; algumas até bem convincentes, que podem confundir o indivíduo, mas que extrapola os limites do concreto, do racional quando se tem o mínimo de competência midiática para vislumbrar os contornos do plausível, do concreto e do fictício. Uma pesquisa corriqueira da expressão “invasão do Brasil” no YouTube basta como exemplo do assustador número de boatos e seu alcance na internet. Parece que esse é um território livre para cada um criar a fantasia que quiser, compartilhá-la como dado da realidade e, então… as consequências são improváveis, dependendo do alcance do vídeo: desde usuários da rede se digladiando em torno do tema, até as práticas que lembram aquela brincadeira “quem conta um conto aumenta um ponto” para endossar o conteúdo. Espalhe-se um boato, em determinado grupo, que há uma conspiração para algum país vizinho invadir o Brasil e logo aparecerá nos comentários alguém jurando que viu tropas estrangeiras se mobilizando na fronteira, portanto, uma testemunha ocular que comprova que o boato é verdadeiro. Mas o mais importante (e perigoso): esse não é um fenômeno nada novo. A boataria já era um obstáculo à democracia, pelo mal-estar da opinião pública, há 2.500 anos em Roma. Voltaremos a esta questão depois. Antes, precisamos falar das competências midiáticas para o tempo presente.

Há um hiato que chega a ser paradoxal: qual o limite entre a crítica sobre um determinado produto midiático e o efeito que ele exerce sobre mim e que influencia as minhas práticas?

Píer Rivoltella, um dos pesquisadores de mídia-educação de influência no país, há mais de uma década alertava sobre a questão da necessidade de desenvolver competências midiáticas e fazia uma alusão à relação dos professores com a televisão. Para ele, todo mundo, genericamente falando, faz críticas aos conteúdos (e suas formas) da TV, mas paradoxalmente todo mundo assiste a esses conteúdos com certa regularidade. Parece claro que entre a crítica, racionalizada, em um momento de distanciamento, e o consumo cultural que se realiza em um momento de distração, entretenimento, ou seja, em um momento em que não estamos com “olho vivo, faro fino e pé atrás” — aludindo àquela canção de Humberto Gessinger — há um hiato que chega a ser paradoxal: qual o limite entre a crítica sobre um determinado produto midiático e o efeito que ele exerce sobre mim e que influencia as minhas práticas? É esse hiato, esse espaço de mediação, que parece cada vez mais nebuloso. É nesse espaço que reside a importância de atuação do educador midiático. É aí onde se realizar o trabalho de Sísifo: interminável e com poucos progressos.

Acrescenta-se a essa questão outros problemas sociais enraizados em nossa cultura: a falta de uma verdadeira inclusão digital, coexistente com acesso amplo da população aos recursos digitais e multimidiáticos; o analfabetismo funcional; a presença quase cristalizada (um habitus, nas perspectiva bourdieusiana) de uma cultura de dominação simbólica ou não. E o principal desafio da educação digital: o fato de grandes parcelas dessa massa de indivíduos estarem inseridas, compulsoriamente, em uma cultura que emerge tendo por base a co-produção de conteúdos digitais, mas sem as oportunidades educacionais e culturais prévias que lhes permitam não apenas o acesso, mas a alfabetização midiática — aqui entendendo alfabetização no sentido freireano de alfabetização de mundo.

Ainda faltam, ao que parece, pesquisas acadêmicas que mostrem as motivações desse tipo de comportamento de compartilhar qualquer coisa à qualquer custo, desde que a pessoa se identifique com a “causa”. As motivações das fontes geradoras podem até ser mais facilmente identificáveis: insuflar a opinião pública contra um determinado grupo de pessoas (ou conta um indivíduo em particular) que representam ou expressam um determinado conjunto de pensamentos. É possível e provável que um boato gere outros boatos e ajude a cristalizar certos discursos contra esses grupos. Seria necessário, portanto, uma genealogia desses boatos em rede. Aqueles que são contra grupos políticos ou ideologias que elas carregam podem ser mais facilmente possíveis de identificar e uma hipótese plausível dessa genealogia é a de que a origem dos boatos não tenha sido contra um indivíduo, personificadamente, mas o conjunto de valores, crenças e ideias que ele representa. A história ensina que as ideias sobrevivem aos indivíduos, mas isso nunca foi motivo para que se parasse de agredir e assassinar indivíduos que portam certas ideias. O alvo político da boataria na internet caminharia nesse sentido: na impossibilidade de atacar ideias, atacam-se pessoas, na possibilidade de atacar ideias, faça. Talvez o exemplo mais assustador seja o constante ataque aos “direitos humanos”, como se fossem uma pessoa ou algum tipo de organização social, e não aquilo o que são: um conjunto de direitos de todas as pessoas. Os boatos que têm como alvo os “direitos humanos” é o tipo de ataque irracional a si próprio. No entanto, os boatos que não têm aparentemente uma carga ideológica ou política e que, aparentemente, só servem para instaurar algum tipo de caos, esses ainda precisam ser explicados por alguma ciência, que talvez nem sejam as da comunicação.

As calúnias e boatos já eram um problema social e político em Roma, nos tempos da república. O que mudou de 2.500 anos para cá é apenas a arena em que esses boatos se estabelecem. A praça pública não saiu de cena, mas a internet a sobrepujou.

Por sua vez, nem se pode dizer que esse é um fenômeno típico da cultura digital: as calúnias e os boatos já eram um problema social (e político) desde a época de Roma, como nos lembra Maquiavel. Um problema tão grande que levou a alterações nas leis e na própria estrutura política da república romana. O que mudou em 2.500 anos, portanto, é apenas a arena em que os boatos se disseminam. Mas essa mudança de arena possui um agravante: se antes, nas sociedades estruturalmente menores, era menos dificultoso identificar as fontes geradoras de um boato e elas estavam mais próximas de pessoas que detinham ou não algum tipo de autoridade, o rastreamento, o julgamento e, conforme o caso, a punição, eram mais facilmente colocados em ação. Foi assim que surgiram as leis do direito de acusação pública em Roma. Já na arena das redes sociais, apesar de não estarem imunes ao arcabouço jurídico e legal que pode ser acionado em muitos casos, as consequências são ainda mais perniciosas do que aquelas a que Maquiavel se referia: a arena é mais ampla e mais fluida; ela se estende do espaço on-line para o off-line e faz o caminho de volta, num movimento espiral e quase incontrolável. A penetração do boato é mais imediata e seus efeitos mais duradouros: os links, os memes, as referências se proliferam e persistem na rede mesmo após a morte do boato (por esquecimento ou por desmentimento).

Mas o boato também deixa uma “herança”: aqueles que não estiveram no centro do alcance do boato podem ter acesso tardiamente aos seus fragmentos, meses, quem sabe anos depois. E se esse indivíduo não tiver a competência midiática, pode reiniciar o ciclo do boato, espalhando-o para outras bolhas (ou os nós das redes sociais) que originalmente também não haviam tido acesso a ele. E dependendo do fragmento encontrado, do nível de acesso ao boato original e, claro, de senso crítico, pode haver um novo boato, remixado, distorcido, haja vista que a remixagem está na base da co-produção de conteúdos típica da cultura digital. Diferentemente da praça pública romana, as arenas das redes sociais têm uma certa memória, com suas vantagens e desvantagens, que pode tornar o ciclo de um boato interminável, cujas repercussões, para as vítimas, podem ser permanentes: não é à toa que o cyberbullying tem efeitos muito mais catastróficos do que o bullying tradicional e que já tem em sua conta uma variedade de casos de suicídio. Se em um contexto ‘analógico’, um nudes [1] tinha um alcance mais ou menos limitado no tempo e no espaço e dificilmente era reproduzível, o mesmo fenômeno na cultura digital ganha proporções indeletáveis, dado o grau de alcance (imediato) no espaço, o grau de replicação e reprodução do conteúdo e suas remixagens [2].

Há, ainda, um outro elemento do boato em rede que torna mais difícil o seu desmantelamento e que repousa na questão da ubiquidade. A mobilidade, mais precisamente, o uso de dispositivos móveis, colocou novos elementos no rito da conexão e no alcance dos conteúdos digitais. Os grupos de WhatsApp nos quais circulam áudios cuja autoria se perdeu, de compartilhamento em compartilhamento, são o exemplo mais banal desse movimento. A ubiquidade atua nesse sair do on-line, penetrar no off-line e entrar de novo em rede sem um rito de conexão, um atuar simultâneo em diferentes espaços, uma espécie de onipresença que serve como portador do transbordamento de conteúdos de uma para outra ambiência. No caso do boato, esse movimento pode ser catastrófico, visto que esse “sair” da rede apaga os seus rastros, mas continua circulando na rede social off-line. Comparado com a praça pública romana, a rede social digital é muito mais poderosa nesse sentido, operada pela mobilidade, pelo duplo movimento da ubiquidade e por um espaço multimensional cujo alcance do conteúdo só pode ser estimado estatisticamente, com amplas e desconhecidas repercussões qualitativas para a psique humana, individual ou coletiva.

Ainda, existe a questão da autoridade. Um boato bem formulado em termos de forma (como o ilustrado na imagem sobre a suposta morte do até agora vivíssimo Alberto Youssef), com aparência de notícia verdadeira, pode enganar à primeira vista até aos não-adeptos de boatos. No caso dos áudios de WhatsApp, basta o locutor ter uma entonação convincente e dizer que é o Major Peçanha, comandante da divisão do exército da fronteira, que o ouvinte menos desprovido de senso crítico pode realmente achar que o exército russo escondido na floresta amazônica está prestes a invadir o Brasil e que, enquanto cidadão brasileiro, é seu dever passar aquela mensagem adiante (nunca fica muito claro qual a finalidade de passar a mensagem adiante, mas esse é outro tema que merece uma análise à parte). Em ambos os tipos de casos, está posta uma autoridade no boato, mesmo que a autoridade não seja comprovada como existente, ou seja, mesmo que não exista autoridade para respaldar o conteúdo. Mas mesmo que existisse, de fato, uma pessoa ou organização “real” com autoridade sobre o assunto, em tempos de internet há uma crise ou inversão de autoridades talvez sem precedente. E aqui não estamos nos referindo a autoritarismo. Estamos falando de quebra de credibilidade ou mesmo de inversão de autoridade, não em função da propriedade sobre um determinado assunto, mas de com qual tipo de ideologia essa ‘autoridade’ se identifica em relação ao tema do boato. Isso explica porque, em certa medida, os médicos ou a família do doleiro Alberto Youssef não tiveram “autoridade” suficiente para desmentir o boato de sua morte, ao menos num primeiro momento ou entre alguns grupos.

É possível dizer que nunca houve tantas possibilidades técnicas de se manter bem informado em conflito com as dificuldades concretas disso. Estão em xeque as teses da sociedade da informação que defendem que um acesso maior às informações conduziria a sociedades com indivíduos mais bem informados. As dificuldades concretas residem na baixa alfabetização midiática da população.

Esse jogo de forças é interessante sob muitos aspectos, pois estamos diante de um fenômeno novo no qual, ao final das contas, existem pessoas comuns que passam não apenas a acreditar em um boato, mas a defender a legitimidade do boato com uma certa autoridade sobre ele; mesmo que não tenham as condições materiais ou concretas para comprovar a origem da fonte ou a veracidade da informação. Este é um tema que as ciências humanas e sociais ainda precisam investigar melhor. A novidade consiste justamente no fato de que, com as redes, as possibilidades de uma consulta sobre a veracidade da informação foram ampliadas, antes de se cair nas armadilhas da rede de boatos. O paradoxo é que, se antes o controle das informações ficava circunscrito a um grupo privilegiado de pessoas (o que tornava mais fácil a manipulação das massas indivíduos), com a democratização do acesso às informações, esse não seria, em tese, um obstáculo ao cidadão bem informado. Dominique Wolton, em seu Internet, e depois?, centra suas análises justamente nesse sentido, na contracorrente das teses que defendem que mais acesso a informações resultaria, inexoravelmente, em uma sociedade com indivíduos mais bem informados, o que a cada dia tem se mostrado falso. O paradoxo do tempo presente, nesse caso, lembra o que Boaventura de Sousa Santos fala sobre o desenvolvimento do mundo: nunca houve tantas possibilidades técnicas, mas em choque com as impossibilidades políticas.

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Nem o novo ministro da cultura fica imune aos efeitos dos boatos ou, nesse caso, à falta de consequências midiáticas. Em 2012, o site de humor G17 “informou” que, a pedido da ex-presidente Dilma Rousseff, as notas de R$ 1,00 teriam a frase “Deus seja louvado” (que, por sinal, é uma ironia num Estado laico) fosse substituída por “Lula seja louvado”. A reação do atual ministro da cultura no Twitter foi imediata e beirou o ridículo, haja vista que a própria “notícia” do site de humor dava o tom anedótico do assunto: “‘Nem Deus, nem Zeus, nem Goku nem Galileu, coloquem o nome do Lula’, teria dito a Presidente Dilma para encerrar a confusão”, dizia a sátira. O exemplo é emblemático, hoje, pelo anúncio de Freire como o homem a comandar a cultura no país. Mas existem outros igualmente anedóticos. Nesses casos, até as matérias do notório site Sensacionalista, às vezes, são confundidas com notícias reais, o que mostra o quanto o campo de atuação do midiaeducador é vasto, amplo e com as mais variadas dificuldades a serem contornadas.

 

Não é exagerada a hipótese de que a criação e disseminação de boatos é um novo nicho de mercado, que encontrou terreno fértil nas redes sociais. Muitos grupos e páginas especializadas em, simplesmente, fazer fofoca, podem ser facilmente encontrados na internet. São nichos de mercado à medida em que aparecem como “links patrocinados”, o que imediatamente coloca a questão: quem patrocina um boato (muitas vezes grotesco) e com qual finalidade? E aqui não estamos nem nos referindo somente a páginas supostamente jornalísticas que distorcem ou editam acontecimentos, nem a grupos de militância ideológica que mostram apenas a sua versão da história; mas a agentes (indivíduos, grupos, organizações) que se especializaram em plantar notícias falsas, com pouca aderência aos acontecimentos concretos. Trata-se, em certa medida, de um tipo de arremedo mais elementar e bizarro dos tabloides, os quais muitos veículos de comunicação se tornaram [3].

Por fim, a cultura do compartilhamento em si mesmo que está se estabelecendo nas redes sociais possui outro aspecto danoso, quando se refere a notícias falsas e/ou boatos: nem todo conteúdo pernicioso pode ser enquadrado como crime, embora as consequências dos seus danos sejam duradouros. Não no dano entendido pelos juristas, mas no dano à inteligência, à intelectualidade, à própria cultura. Há algumas opiniões de que a internet abriu as porteiras da ignorância (Umberto Eco quase foi novamente morto quando sua entrevista nesse sentido ganhou visibilidade no Brasil). Com a diluição da autoridade, é comum ler comentários de cidadãos medianos dizendo que o entrevistado fulano não sabe de nada, mesmo que esse fulano entrevistado tenha um pós-doutorado e faça pesquisas naquela área há 20 anos. Ou ainda, é corriqueiro cidadãos comuns, entre eles adolescentes, chamando essas personalidades para o debate nos comentários de alguma notícia, querendo, talvez, provar sua autoridade numa suposta vitória em um fórum de internet — algo que lembra os duelos de vida ou morte em tempos passados, que achávamos menos civilizados [4].

Essas questões, colocadas acima, são ainda campo fértil para investigação acadêmica, mas também, como exposto no início do texto, um desafio permanente e cansativo ao educador midiático, dada a repetição e as tentativas fracassadas de constituir uma rede mais politizada. Um autêntico trabalho de Sísifo. Mas, diferente da mitologia, mais de uma pedra está rolando montanha abaixo. E com elas, talvez, toda a prospecção utopista feita em torno de uma sociedade cibernética e da emergência, em torno e por causa dela, de multidões inteligentes.


Notas
  1. Observa-se que o termo “nudes”, corriqueiro na atualidade, nem mesmo existia tal como conhecemos em períodos mais analógicos, ou seja, pré-internet.
  2. São notórias as disputas judiciais de celebridades para remoção de seus conteúdos íntimos da rede. Uma tarefa quase impossível, pois uma vez postada, não há mecanismos que impeçam alguém de ter feito o download para circulação extra-rede ou em ambiências de difícil rastreamento, como a deep web. Por sua vez, não são notórios os casos de pessoas comuns que estão na mesma situação e que, portanto, ganham menos visibilidade que as celebridades. Em ambos os casos, acrescenta-se um agravante, propriamente das remixagens. Em muitos casos, como nos de fotos íntimas ‘vazadas’ para a internet, páginas e usuários aumentam o alcance por meio de montagens de outras fotos. Alguém que tenha uma foto íntima vazada, por exemplo, pode ver esse número ampliado para tantas quantas forem possíveis, desde que se encontrem modelos fisicamente parecidas. Obviamente esse fenômeno é quase tão antigo quanto à própria fotografia. O famoso caso das fotos da Princesa Diana, pouco antes do casamento com o Príncipe Charles, pode ser considerado um exemplo clássico. A questão é que com o alcance da rede, esse fenômeno saiu do controle.
  3. Os resultados de uma prática de alfabetização midiática pode ser encontrado no trabalho de grupos como o Caneta Desmanipuladora. A partir do entendimento de que a forma como são noticiados os acontecimentos partem de vieses políticos e ideológicos do jornalista ou do grupo de comunicação para o qual trabalha, a prática do Caneta Desmanipuladora consiste em reescrever manchetes de jornais e revistas, dando transparência à informação, e despindo as sutilezas várias vezes utilizadas pelos jornalistas. Mas, para além dessas manchetes, de veículos de comunicação que se pretendem isentos, outros veículos de comunicação tradicional não têm a mesma parcimônia em demonstrar que, de fato, deixaram de fazer jornalismo para fazer fofoca. No Brasil, o caso mais emblemático é a decadência evidente da Revista Veja, uma das mais importantes publicações sobre política e economia, mas que assumiu seu descompromisso com o conceito de jornalismo, chegando a publicar matérias completas com base em boatos e praticando o “quem conta um conto aumenta um ponto”, ou seja, ampliando os boatos a partir de um boato inicial.
  4. Uma evidência desse comportamento perigoso entre os jovens tem sido cada vez mais corriqueira na internet. Tem sido comum encontrar comentários de jovens e adolescentes que “chamam par o debate” seus supostos oponentes. Emblemático é o caso de um adolescente que não concorda com a colocação, em um vídeo no YouTube, do professor Leandro Karnal, sobre o esvaziamento da democracia na ditadura militar brasileiro: “Esse professor não aguenta meia hora de debate comigo”. Está posta uma inversão de autoridade concedida pelas redes, como se informar-se nas redes sociais seja suficiente para desconstruir a própria história. Mas também merecem atenção os comportamentos de “líderes mirins” de algumas páginas cujo financiamento é desconhecido, que não se contentam em contra-argumentar às ideias com as quais não concordam: tentam desqualificar o portador do discurso. Nesse caso, também tem sido comum o “chamar para o debate”, algo que, em função do tom do discurso, em algumas ocasiões pode ser traduzido como: venha para o duelo que eu acabo com você. As ideias se perderam; o que importa é derrotar o oponente. Sua morte, mesmo que simbólica, é um desejo tão bárbaro quanto os daquelas sociedades em que os líderes eram construídos em um duelo de pistolas ou de espadas, uma espécie de “faroeste caboclo high-tech“.
 *Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador na área de educação, cultura digital, trabalho e tecnologias.

Sobre Rafael Cunha

Doutor em Educação; doutorando em Sociologia Política e Mestre em Educação na área de comunicação e tecnologias. Há mais de uma década pesquisa sobre cultura digital e suas relações com trabalho, educação, comunicação e vida cotidiana.

Publicado em 18 de novembro de 2016, em Efeitos da cultura digital, Especiais - Mídia, Educação e Tecnologias e marcado como , . Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

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